Los Angeles, 2019. A decadente e pluviosa metropolis exibe slogans comerciais através de vídeos refulgentes, as estradas encontram-se atulhadas de trânsito e o ar é uma mixórdia de poluentes. O mundo é negro, frio, hostil e nocivo. É um período de decadência, medo, lixo, chuva ácida, néon e promessas de ar puro, águas azuis cristalinas e relva verde. Será uma visão do presente projectado no futuro? Sim. É o negro destino da sociedade de consumo, capitalista e poluente, a distopia do amanhã.
Rick Deckard (Harrison Ford) é um Blade Runner retirado. Ou seja, um polícia especializado na perseguição de Réplicas (humanos artificiais, andróides semelhantes em praticamente todos os aspectos humanos, excepto dois pormenores: ausência de memória e vida extremamente curta). Quatro Réplicas assassinas fugiram de uma colónia espacial e encontram-se à solta na cidade. A missão de Deckard é exterminá-las.
“Blade Runner” é uma cadenciada fusão de ficção científica com film-noir dos anos 40. É baseado na obra de Philip Kindred Dick intitulada “Do Androids Dream of Electric Sheep?”. Este autor é responsável por um vasto leque de romances que originaram alguns filmes, tais como “Minority Report” de Steven Spielberg ou “Total Recall” de Paul Verhoeven. Ridley Scott e a sua equipa de argumentistas (Hampton Fancher e David Peoples) pegaram no alicerce do romance e edificaram um poderoso filme que transcende o próprio romance de Philip K. Dick, aprofundando-o. Demarca-se inclusive da sua fonte de inspiração e engloba referências bíblicas e mitológicas enobrecendo a sua concepção.
Ridley Scott foi auxiliado pelo designer de produção Lawrence G. Paull (“Back to the Future”) na materialização da sua prodigiosa visão. O lendário artista comic, Jean “Moebius” Giraud, responsável pela arte conceptual de “Alien”, oferece também um valoroso apoio como designer.
Os efeitos especiais são deslumbrantes, e a direcção artística é das mais originais na história da Sétima Arte, enleando arquitectura Ultra-Moderna, Maya e Egípcia numa formosa tapeçaria. A cinematografia a cargo de Jordan Cronenweth é tão excepcional que os visuais adquirem as funções de uma personagem. Cada plano é engenhoso, inventivo e deslumbrante. Cada cena é meticulosamente perpetuada em filme e daria um fenomenal poster. O uso das sombras e os ângulos da câmara são alvos de minuciosas preparações.
“Blade Runner” é essencialmente negro, acentuado nas sombrias artérias frequentadas por vagabundos. As perspectivas da cidade através do piramidal edifício Tyrell realçam o smog que a obscurece. As cenas envolvem igualmente massivas camadas de néon, chuva e exóticos raios de luz que se tornaram imagem de marca desta obra. O cenário é barroco, com uma inquietante aglomeração de detalhe. O som é atmosférico e a composição do grego Vangelis é essencial, memorável, mágica.
As personagens são inquietantes e exemplarmente concebidas. O reduzido elenco foi meticulosamente seleccionado. Harrison Ford (Rick Deckard) oferece uma das suas melhores interpretações, seguro e credível. Sean Young representa a esbelta Rachel com inocência e vulnerabilidade, projectando uma imagem do que consideramos Humano. Daryl Hannah é a sedutora e mortífera Pris, o eficaz Edward J. Olmos dá vida a Gaff e Rutger Hauer (Roy Batty) é o fenomenal líder das Réplicas, num papel antagónico de vilão. O seu carisma é expressado liricamente através de memoráveis linhas, num convincente retrato apaixonado e desesperado. A relação entre os actores não foi muito saudável, mas a tensão entre os elementos do elenco apenas tornou o produto final mais intenso e emocional.
“Blade Runner” transcende o género, através de meditações filosóficas, políticas e morais, questionando sociedades contemporâneas. Incita reflexões existenciais sobre a vida e a morte, sobre o significado de humanidade, a natureza e relevância da memória na nossa existência, sobre o desejo de imortalidade. É uma gloriosa análise do nosso planeta, uma brilhante dissertação sobre o desenvolvimento e evolução da humanidade. “Blade Runner” é um daqueles raros filmes que se atrevem a prever o futuro e cujas conjecturas se revelam mais acertadas à medida que os anos passam.
O filme toma lugar durante uma guerra silenciosa entre humanos e andróides e no decorrer do filme, ambos colocam idênticas questões filosóficas: Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos? O observador é estimulado a ponderar a essência da Humanidade. Que é que nos faz Humanos? Memórias? Pensamentos? Ideias? Sentimentos? Que será realmente um sentimento?
As influências do filme foram “Metropolis” de Fritz Lang (1927) e “2001: A Space Odyssey” de Stanley Kubrick (1968), dois marcos na história da ficção científica em particular, e da Sétima Arte em geral. Criado em 1982 à sombra de “Star Wars” e “E.T.”, a visão de “Blade Runner” não foi (nem será) assimilada pelo comum moviegoer, pois desde “2001: A Space Odyssey” não surgia um filme tão complexo, provocante, sofisticado e intelectualmente estimulante. O género Sci-Fi foi inovado e transcendido por este filme de culto, cuja influência gerou inúmeros ecos, repercutidos não só em filmes, obras literárias, comics e até vídeo-jogos, como também foi objecto de reflexão em críticas, ensaios, livros e estudos. A crítica ignorou o filme na altura do seu lançamento, para mais tarde ser obrigada a glorificá-lo pelas repercussões que produziu. A bofetada de luva branca foi primorosa.
Ver este filme representa para mim uma jornada religiosa. Nos dias que correm, um bom filme de ficção científica é um raro artefacto. O âmago e o coração do género, as ínfimas faculdades da imaginação e do pensamento foram substituídos por sequências de acção primitivas e panóplias de efeitos especiais criados para camuflarem míseros argumentos. O resultado é o género ter-se tornado (para muitos) sinónimo de retardado e previsível filme pipoca. É por isto que devemos projectar o nosso olhar bem atrás no tempo, para descobrir e contemplar boa ficção científica. Todos os géneros têm as suas Obras-Primas, e “Blade Runner” coroa o género Sci-Fi.
De referir ainda que o filme teve direito a um “Director’s Cut”. Nesta versão, Ridley Scott reivindicou a sua genuína visão, sem a adulteração dos estúdios. O resultado é um filme que graças à subtileza de Scott, supera o original. Aliás, “Director’s Cut” é o verdadeiro filme original. Representa o imaculado desígnio do realizador, pois dá ênfase ao simbólico Unicórnio e elimina a narração e o final “feliz” (menos ambíguo) imposto pelos estúdios. O final do filme é assombroso, violento e envolvente. Deixa uma impressão indelével. “Blade Runner” é único e fenomenal a todos os níveis. É um conto profético e emocional que se estabeleceu como um dos mais originais e inteligentes filmes de ficção científica jamais edificados. “Blade Runner” faz-nos sentir, pensar e questionar a realidade. A fantástica visão barroca de Scott, a chocante iconografia, o futurista mundo alquebrado, a majestosa fotografia, a mágica composição musical e o acutilante argumento deificam a história. “Blade Runner” é o exemplar filme transcendental.