sábado, setembro 01, 2007

"Ratatouille", de Brad Bird

Class.:



Buffet de sensações

Partindo do princípio da Fábula (conferir Humanidade aos animais em histórias cujo desenlace reflecte uma moral), Brad Bird desenha relações temperadas pelos sonhos e ambições de Remy, um rato desajustado com a sua condição de animal desprezível, que ambiciona tornar-se um Chefe de Cozinha. Com uma narrativa que poderia muito bem servir um artístico filme independente, “Ratatouille” representa condignamente o supra-tema da Animação: o respeito pela diferença, radicalizado num ser tão repulsivo como o rato. Nem todos podem alcançar o estatuto de grande artista, mas a Arte surge onde menos se espera.

O que torna “Ratatouille” excepcionalmente delicioso é a forma como todos os seus ingredientes se fundem, demandando que o desgustemos como se de uma refeição Gourmet se tratasse. Tal como a receita mencionada no título, a humilde disposição de “Ratatouille” é confeccionada com uma bela dose de Amor. Contornando a regra geral dos estúdios jactanciosos de Animação, a obra realça um âmago intimista, prevalecendo como estudo de personagem e respectivo meio envolvente, em detrimento do espectáculo, da acção e da gargalhada fácil. É um filme repleto de valores de produção que não cai na ratoeira da extravagância CGI. Com a Pixar, nem os actores são seleccionados consoante o seu grau de celebridade ou com o intuito de preencherem cartazes publicitários com seus nomes. Os feiticeiros desta companhia nunca tombam na simplicidade do trilho mais acessível para a fama. Tudo é orientado em prol da qualidade e simplicidade de uma boa história. Não existe uma tentativa de criar o desenho mais fofo de sempre, nem passeia pelo filme um rato de mãos nos calções a assobiar, com silicone nas orelhas. As personagens que pululam pelo conto são roedores abjectos que ganham a nossa simpatia, porque para a corajosa Pixar tudo gravita em torno do tratamento concreto de questões humanas a partir de abstracções suscitadas pelo exercício de fantasia animada. A conquista da audiência terá de surgir a partir da interacção do mundo animado com as personagens e respectivas nuances comportamentais.



Os padrões exageradamente realísticos na concepção dos desenhos das personagens são ignorados em prol da ênfase que se pretende investir na movimentação e ambiência. E neste domínio de perfeição absoluta, a Pixar pulveriza concorrências no reino da Animação. Tal como os subúrbios de “Toy Story” ou o mar exótico de “Finding Nemo”, o pano de fundo é tão vívido quanto as personagens que o preenchem, permitindo uma liberdade de movimentos e perspectivas que esticam e contrastam para gerar múltiplas sensações, enquanto a sua imagética varre todo o nosso campo de visão. Cada fotograma é uma Obra de Arte. Um festim para os sentidos. Deambulando pela Cidade da Luz, do Amor e da bela comida, a fluidez de movimento gera sensações hipnóticas de magia, numa composição em ecrã largo que encerra inúmeros detalhes. Até Michael Giacchino, o compositor de serviço da brilhante série televisiva “Lost” e do anterior filme de Bird (“The Incredibles”), elabora uma trilha que nos transporta para a Paris clássica do Cinema. Boémia, bela e romântica, a cidade fica divinamente envolvida em traços Jazz, um ritmo que emana um espírito de liberdade. “Ratatouille” é também uma carta de Amor a Paris, uma cidade que adquire os contornos palpáveis de uma autêntica personagem. Um local instantaneamente familiar e infinitamente misterioso, que injecta profundidade emocional nos acontecimentos que acolhe. A cada novo filme, a Pixar eleva a sua própria fasquia, com animações cada vez mais expressivas, fluidas e emotivas como o estilo tradicional. A sua beleza é extasiante, repleta de sombras e texturas. Existe genialidade na manipulação de pêlo, água, fogo e alimentos, que parecem sempre quentes e saborosos em vez de frios e plásticos. Tal como Walt no período glorioso da Disney, Lasseter, Bird e restantes feiticeiros da Pixar compreenderam que o inimigo da inovação é a complacência. Em todos os projectos que abraçam, existe um mergulho no escuro que nunca torna a salvação um dado adquirido. Um desafiar dos limites que emerge a noção de que para a concepção de Arte magnificente é necessária uma união de artistas com a honestidade emocional necessária para estampar Humanidade na criação.

Assim como um bom vinho no seu estágio em garrafa, as obras da Pixar tendem a evoluir com o passar dos anos. Bem antes da rolha saltar e de sorvermos o néctar divino, já sabemos como um vintage se irá comportar no nosso palato. Contudo, existem sempre pequenas surpresas que elevam a experiência com memoráveis particularidades. Não existem cá piadas à cultura pop contemporânea, pois os desígnios da Pixar são tão intemporais como o Humor do Cinema mudo. Aqui entra a magia que “Toy Story” também manifestava quando os bonecos tombavam inanimados assim que entrava um ser humano no quarto. O grande charme de “Ratatouille” reside na relação entre Remy e Linguini (que apenas escuta guinchos quando o roedor abre a boca). Através de uma comunicação assente na troca de olhares e gestos, assistimos à evolução de uma sinergia que a fala poderia arruinar. Em “Ratatouille” não existem as vitórias e derrotas apregoadas na Animação, mas mudanças de percepção. Pena que exista ainda muita gente que encara a Animação como uma babysitter, nunca a percepcionando como uma forma de Arte. Com “Ratatouille”, Bird continua a reanimar o drama humano de “The Incredibles”, mas sem a fanfarra da acção que impedia os miúdos de se distraírem pelo caminho. Prevalece uma ânsia arrojada em desafiar e subverter as noções preconcebidas da plateia, incluindo suas ansiedades. “Ratatouille” não representa apenas a história de uma personagem com um sonho alucinado de vida, mas o retrato de um Artista que persegue de forma devota a sua Musa.

10 Comments:

Blogger Gonçalo Trindade said...

Um filme absolutamente nmravilhoso. Um clássico instantâneo do cinema de animação que evita todos os clichés do género e cria algo de um classicismo mas ao mesmo tempo de uma complexidade notável. E é a consagração de Bird como um dos grandes autores do cinema de animação contemporâneo.

1:15 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Gostei, mas acho-o longe de uma obra-prima. É verdade que visualmente tem pormenores impressionantes, já na narrativa não me pareceu tão conseguindo, perdendo-se mesmo em algumas sequências sem ritmo ou demasiado previsíveis. Mas merece ser visto, de qualquer forma.

7:36 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Talvez seja desta vez que faço as pazes com a animação 3D.Muitas saudades dos tempos áureos da animação tradicional... Enfim, felizmente ainda há golpes de génio no meio de toda a parafernália computorizada. Depois deste post não vou mesmo deixar de ver o filme (especialmente vindo de alguém que venera "The Fountain"!).

Saudações cinéfilas,

Marta

3:12 da manhã  
Blogger Carlos Pereira said...

"Ratatouille" é simplesmente fabuloso em cada imagem, devolvendo-nos a magia de um primeiro olhar e a capacidade de sonhar esperançosamente com o nosso futuro. Dissecando um pouco a obra de Brad Bird, encontramos um filme de um registo dramático imenso. Quase que me atrevo a considerar "Ratatouille" um mágico filme para adultos que ainda sonham e sentem (coisa rara nos dias que correm...)

Um dos melhores filmes da década num ano cinematográfico especialmente forte, creio. E é mais um ponto a favor dos que defendem a Pixar como expoente máximo no cinema de animação actual.

Abraço Francisco!

3:47 da manhã  
Blogger Francisco Mendes said...

Gonçalo Trindade: Plenamente de acordo. O seu "The Iron Giant" é igualmente magnífico e sempre maravilhoso de se rever.

Gonn1000: Pois é justamente a narrativa que eu considero ousada, tratando-se de um filme de Animação. O seu final tem tanto de imprevisível neste meio, como de inspirador.

Poeira: Percebo bem o que queres dizer, mas a animação tradicional ainda vive tempos áureos... temos é de olhar para Oriente (Miyazaki).

Saudações.

Carlos Pereira: É realmente um ano cinematográfico bem forte. Daí o destaque que esta obra merece por ainda assim se conseguir impor categoricamente.

Abraço!

8:58 da manhã  
Blogger meldevespas said...

Bebi literalemte as tuas palavras!!!!
É que traduziste exactamente o que senti quando vi o filme. É pura magia este Ratatouille, é quase perfeito ao nível visual, e o tema é no minimo, pertinente.
Estes tipos da Pixar estão a colocar a fasquia mesmo muito alto, e eu como amante de filmes de animação que sou (até porque sou mãe de 3 crianças) pago de bom grado pra ver mais e mais!

2:48 da tarde  
Blogger Maria del Sol said...

A tua crítica ainda aguça mais o apetite para um filme onde o paladar é rei. Já tinha saudades de aqui vir, obrigada pelo comentário no meu espaço :)

4:15 da tarde  
Blogger Francisco Mendes said...

Mel de Vespas: São autênticos magos da Animação contemporânea.

Maria: Quem é que consegue ignorar um Lugar ao Sol ;)

9:27 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Não sou uma incondicionável dos trabalhos da Pixar e embora Ratatouille me tenha tocado (mais pela doçura que pela diversão), ainda nada conseguiu igualar aquelas perfeições que sairam das penas da Disney em décadas idas... Ver filmes de animação é para mim uma experiência pessoal de forma particular (em relação a outros filmes), e acho mesmo que o meu coração ficou preso ao que conheci na infância...

(mas embora não em completa sintonia com elas, menção sempre com admiração pela qualidade das tuas palavras caro Francisco)

2:17 da manhã  
Blogger Francisco Mendes said...

Entendo-te perfeitamente cara Helena, pois também encaro o visionamento de um filme de Animação como um ritual.
E neste género apaixonante, a Pixar triunfa como a boa/velha Disney. A Arte, a Magia, a Poesia, a Audácia, a Eloquência, a Fluidez, a Ternura, a Diversão, a Graciosidade, a Inteligência e a Emoção abundam em copiosas manifestações de pura Excelência.

11:24 da manhã  

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