sábado, julho 30, 2005

Cinema e violência

Uma bela fracção de individualidades considera que existe uma relação entre cinema e violência. Muitos defendem que certas películas (“Pulp Fiction”, “Raging Bull”, “Clockwork Orange” e mais recentemente “OldBoy”) incentivam a prática de vários tipos de vandalismo. Nos anos 70, um caso chamou a atenção. Depois de verem o filme de Kubrick intitulado "Clockwork Orange", um grupo de rapazes saiu de carro e tentando imitar os personagens do filme, deram uma violenta pancada na nuca de uma pessoa que passava na rua, matando-a. Na Inglaterra proibiram o filme, e as críticas não se fizeram esperar.

Eu pertenço a esse grupo de pessoas que abomina a censura. A questão da violência é extremamente complexa e sensível, mas apontar o cinema como gerador de violência é tão ridículo para mim como quando rotulavam o rock de música associada ao diabo. A educação começa em casa. Os papás demasiado alienados pelas suas actividades olvidam a responsabilidade educacional que têm para com os filhos. A percepção e distinção entre bem e mal deve ter os primeiros passos nos nossos lares. Os pais têm a incumbência primordial de gerar bons alicerces e escudos nos seus petizes para estes enfrentarem de forma sadia o mundo e seus devaneios. Os psiquiatras dizem que uma em cada quatro pessoas tem desequilíbrios mentais. Torna-se óbvio que certas pessoas ensandecidas, fervilhando violência no seu interior, poderão obter inspiração maligna em qualquer lugar, seja no cinema, em casa, na escola, em concertos e até em jogos de futebol. O que acho gravíssimo é desejarem limitar a liberdade criativa de um autor, imputando-o pelas acções de outrem. Cada cabeça, sua sentença. Todo o ser humano é responsável pelas suas acções.

Com certeza existem múltiplos e diversos filmes portadores de uma violência vulgar e medíocre, no entanto também existem obras-primas com uma carga visual e emocional bastante fortes. Acho bizarro acusar filmes (sejam eles “Old Boy”, “Pulp Fiction” ou “Clockwork Orange”) de invólucros de violência banal sem nunca os terem sequer visionado, ou evidenciarem preguiça na análise da respectiva peça de Arte. Das duas uma: ou não estamos a alcançar o “Quadro Geral” ou então é tudo uma questão de educação e cultura cinematográfica. Um dos filmes mais violentos de sempre, “A Paixão de Cristo”, foi criticado pela sua “violência banal e gratuita”. Foi visionado por um texano (Dan Leach, 21 anos) que após a projecção do filme procurou as autoridades para confessar o assassinato de uma mulher (Ashley Wilson) de 19 anos que estava grávida dele (e esta, hein?). Leach contou que matou Wilson porque ela estava grávida de um filho seu e ele recusava prolongar a relação que tinham. Ashley Wilson foi encontrada morta no apartamento, ao lado de um bilhete falando da sua depressão, mas Leach disse que preparou a cena para dar a impressão de suicídio. Pela ordem de pensamento de certas pessoas, o culpado deste assassinato seria porventura... Tarantino não?! É óbvio que não. É evidente que existem pessoas desequilibradas com sentimentos negativos efervescentes, com deploráveis fundações emocionais.

O código Hays de censura, que limitava a apresentação de sexo e violência nas telas de cinema, foi removido em 1968. A violência já foi pensada por teóricos e cineastas como uma experiência fundamental da Sétima Arte, uma experiência intimamente ligada à própria estrutura do fluxo audiovisual. As imagens violentas produzem um certo sobressalto no espectador. Esse sobressalto de sensações é criado pela associação de imagens mais líricas e poéticas com imagens absolutamente violentas e inesperadas, a poesia extraída dessa associação inesperada. Um choque sensorial, um soco visual capaz de levar a um entendimento. A violência necessária para sairmos da inércia do hábito, dos pensamentos habituais. Entregues à nossa "bela alma" e à rotina, pensamos muito pouco. O filósofo francês Henri Bergson chega a comparar o "homem do hábito" à vaca no pasto, ruminando satisfeito, grau zero de pensamento.

“Clockwork Orange” ou “The Shining”, ambos de Stanley Kubrick, são filmes que demonstram cabalmente como o cinema vai muito além da mera experiência audiovisual. O seu profundo significado e sátira não serão assimilados pelo comum moviegoer. Ou seja, como a maioria da audiência sairá da sala com pensamentos superficiais, matutando na violência e olvidando a perspicaz mensagem, deveríamos limitar o génio artístico, porque alguns não o captam? Qual é o objectivo dessa censura? Evidenciar um ócio analítico e transformar o cinema numa substância para obtusos. Será este o mesmo género de indivíduos papalvos e herméticos, que aplaude o oco filme pipoca de Verão? Vamos matar a concepção de arte, porque a maioria pautada por uma ignóbil ignorância, prefere nutrir o estômago em detrimento do cérebro? Foi também graças a isto que o cinema de ficção científica passou a ser sinónimo de retardado. Pretendem adelgaçar o poder de reflexão da Sétima Arte, até este sumir. Que me desculpem os herméticos que sofrem de ócio e ausência de faculdade analítica, mas permaneçam ruminando no pasto e mantenham-se longe de uma sala de Cinema. Reconheçam a vossa inaptidão, o vosso alcance é limitado... ou nulo.

14 Comments:

Blogger brain-mixer said...

Concordo plenamente contigo! Se até cá em Portugal fazem por causa de jogos de futebol... E isto é um pouco como o Fight Club, hem? Libertem-se!! Embora este último puxe para o fascismo e (quase) ensine a fazer dinamite. Por aí, vejam o Starship Troopers, uma pérola que com a extrema violência que contém, satiriza todo o contexto em que se insere. Mas Clockwork Orange é um daqueles filmes de que se deveriam observar, analisar e estudar. Ah pois!

10:36 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Esxcelente post! Adorei aqueles que referenciaste, todos eles clássicos : "Old Boy”, “Pulp Fiction” ou “Clockwork Orange". Dou 5 a todos. Posso ser admirador de uma valente porrada, mas acima de tudo gosto de cinema de qualidade!

11:06 da manhã  
Blogger Hitler said...

O mais ridículo é as pessoas quererem culpar o cinema a música ou qualquer outra forma de arte pelos actos que cometem. Já viram alguém culpar as televisões em geral porque passam notícias muito violentas?
Acho que na parte do post que te referes a Paixão de Cristo acabas com "Pela ordem de pensamento de certas pessoas, o culpado deste assassinato seria porventura... Tarantino não?!" Acho que te querias referir a Mel Gibson, não?
Bom post, as pessoas deviam começar a perceber a diferença entre ficção e realidade e se não o conseguem o problema é delas e não dos filmes.

11:26 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Concordo com a Ana. Os notíciários também passam violência em horário nobre e ninguém diz nada...

Cumps. cinéfilos

1:22 da tarde  
Blogger Coutinho77 said...

Os noticiários são a principal fonte de violência canalizada directamente para todas as mentes susceptiveis a horas impróprias.
Culpar o cinema, ou qualquer arte que imite a vida é desviar as atenções e tentar culpabilizar algo que não implique a própria educação ministrada pela sociedade.
Lembro-me que até o tom e jerry já culparam na violência entre as crianças... Enfim.
Abraço!

2:11 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Pior ainda, no horário da manhã passam séries como o "Dragon Ball" ou o "Neon Genesis Evangelion" na SIC, quando no Japão estas séries são passadas à noite, fora do horário nobre. Agora digam... querem culpar quem? Os pais, a televisão, as crianças????

2:28 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

P.S. sabiam que 4 personagens principais de 'Clockwork Orange', erão para terem sido interpretadas pelos membros dos Rolling Stones?! Será que por esta altura seria um filme de culto!? Acho que ia mudar tudo...ou não!

4:13 da tarde  
Blogger Gustavo H.R. said...

Compartilho sua indignação quando montam complôs escandalosos para censurar obras cinematográficas. Lembra-se de DOGMA também? Aqui no Brasil houve manifestações na rua - mas DOGMA não era violento. Um drogado maluco matou pessoas durante uma sessão de cinema aqui em meu país... O filme? FIGHT CLUB. Imagine o que veio depois: é culpa do filme!
A culpa está naquilo que você apontou: o que ocorre em casa. Acho infeliz a situação de precariedade familiar existir, mas a arte não merece levar o fardo, sozinha, nas costas.
Brilhante texto, Francisco!

5:11 da tarde  
Blogger brain-mixer said...

"Num futuro próximo, cada espectador é submetido a um rigoroso teste psicológico à entrada da sala de cinema, através de complicados testes de 'Rorschach'" ... Dava uma boa curta, não?

9:24 da manhã  
Blogger Francisco Mendes said...

Brain-mixer: "Clockwork Orange" é uma obra intemporal.

André: Muita Qualidade!

Ana: Referia-me mesmo a Tarantino, numa alusão a "Kill Bill". Percebes? ;) Obrigado!

s0lo: Ora nem mais. Hasta!

coutinho: Fizeram da Arte um bode expiatório. Triste... Shame on them!

membio: Bem focado.

André: "Clockwork Orange" É um filme de culto supremo. Não necessita de qualquer adição ou modificação.

renato: LOTR com Beatles... arghhh =) Abraço!

Gustavo: Muito obrigado. "Fight Club" é um filme sublime, infelizmente incompreendido por muitos.

brain: Ora aí está uma bela iniciativa... para curta.

9:04 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

A obra cinematográfica de Stanley Kubrick é extensa e única. "A Clockwork Orange" assim como "Full Metal Jacket" , tocam em pontos sensíveis da modernidade com um rigor e perfeccionismo únicos que o tornaram num realizador cuja importância na história do cinema mundial se tornou consensual.
Concordo contigo Fernando, é de facto uma obra intemporal.
Em resumo, um excelente artigo!
Os meus cumprimentos.

André Carita

http://cinesphere.blogs.sapo.pt

12:38 da manhã  
Blogger Francisco Mendes said...

Obrigado André Carita!

8:02 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Os filmes que desconstróem a sociedade nos seus elementos mais primordiais e animalescos, funcionam como um "aviso artístico". Mas para perceber este aviso é preciso saber parar e abstracizar aquilo que estamos a ver. Os fãns das "estreias absolutas na televisão portuguesa" nunca hão-de compreender.

ricardo valadares

9:41 da manhã  
Blogger Francisco Mendes said...

Isso é que é lamentável. Deveríamos romper com a preguiça e dissecar profundamente o que experimentamos.

11:23 da manhã  

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