"Babel", de Alejandro González Iñárritu
Alargando a sua perspectiva sobre os predecessores “Amores Perros” e “21 Grams”, Alejandro González Iñárritu conclui com “Babel” a trilogia de vidas intersectadas que edificou em parceria com o argumentista Guillermo Arriaga. Tal como o título implica, “Babel” relata a dificuldade de comunicação entre o Homem, mas apesar da história se desenrolar em três continentes e escutarmos cinco línguas discrepantes, a linguagem está longe de ser o principal estorvo. A exploração é centrada nas convicções culturais, na forma como as nossas diferenças recalcitrantes nos afastam de uma conexão humana genuína. Narrando quatro histórias distintas, distanciando suas personagens de forma linguística e geográfica, cunhadas e lapidadas pelos caprichos transgressores culturais, Iñárritu vai destapando lentamente o véu que oculta o elo cronológico e casual que as une.
As implicações bíblicas do título (Genesis 11:1-9) referem-se a uma Humanidade unida através de uma só língua na edificação de uma torre que rompesse os céus e alcançasse Deus. Irado com a arrogância altiva do Homem, Deus baralhou os idiomas cessando a cooperação da gigantesca construção. Iñárritu aplica o conceito de Babel ao actual panorama sócio-político, onde uma extensa Manhattan destas torres é erigida por colectividades daninhas, que poderão ser repentinamente derrubadas por credos que dividem o Homem desde o raiar dos tempos. Nós acentuamos diferenças em vez de celebrarmos uniformidades distintas. Iñárritu sonda bem fundo no vácuo existencial das suas personagens, para desvendar as múltiplas camadas humanas de tristeza e rancor pela conjuntura da sociedade mundial. Esquadrinhando a complexidade do vínculo entre pais e filhos, o realizador mexicano projecta uma visão global contemporânea. Existe uma inaptidão universal na correspondência entre maridos, esposas e respectivos filhos. E quando as palavras não embalam a alma, o corpo torna-se uma arma, um convite à exterminação progressiva. “Babel” emana um poder silencioso que se fará sentir veementemente no encetar das ruminações intelectuais e espirituais.
“Babel” é uma jornada de montagem virtuosa. Cortes precisos, mudanças de tom criteriosas e close-ups vorazes que desabam e fundam de forma apelante um autêntico império de sentidos. Elíptico como um sonho, directo como a trajectória de uma bala, “Babel” coloca o dedo numa série de feridas que flagelam a humanidade. Palmilhando as montanhas argilosas de Marrocos subjugadas pelo murmúrio de ventos errantes, pasmando na visão fluorescente de uma Tóquio tecnológica e inebriando no calor vibrante mexicano, cada local possui a sua aura característica. Com o apoio de Rodrigo Prieto na fotografia e Gustavo Santaolalla na assoladora composição sonora, Iñárritu estabelece um sentido de espaço concreto, gerando o sedutor bailado entre imagem, som e argumento. Mesmo as sequências individuais são visceralmente distintas: como a imagem de dois rapazes horrorizados com a tragédia despoletada numa brincadeira ingénua, a tensão asfixiante da fronteira entre os Estados Unidos e o México após momentos de festividade e a euforia esvoaçante de uma rapariga (Chieko) que se converte momentos depois num isolamento opressivo. A montagem funciona aqui como uma criadora abstracta de sentido. Iñárritu reverte planos num devir temporal, articulando lógicas imagéticas consoante suas preocupações intelectuais e emocionalmente familiares. Arriaga é um argumentista torrencialmente inventivo, idóneo na articulação artística das diversas linguagens que interagem na comunicação humana e ambos (Iñárritu e Arriaga) desafiam as potencialidades dos mecanismos que determinam a produção de sentido, propondo tessitura crítica sobre a imagem e obtendo na sua plateia atenta leituras adensadas.