domingo, fevereiro 12, 2006

"Brokeback Mountain", de Ang Lee

Class.:



Cavalgar pelos misteriosos trilhos do coração humano

Duas pessoas ascendem à remota Brokeback Mountain numa missão de trabalho. Quando descem partilham uma profunda conexão.
Eventualmente acabam por se casar e procriar com outrem, mas vivem insatisfeitos e a distância que os separa cava-lhes um fosso espiritual, apenas colmatado com ocasionais jornadas piscatórias onde suprimem as saudades e saciam a paixão. “Brokeback Mountain” é a história de duas pessoas que se apaixonam pelo ser que menos esperam, vivendo um romance abominado. E se agora vos disser que este romance envolve dois homens? Será que este pormenor despoleta uma panóplia de preconceitos?
Todos os anos surge um filme indie que aglomera um culto quase instantâneo e arrebata múltiplos louvores durante o seu trajecto pelos festivais, mas quando é lançado no circuito internacional alguns críticos refestelam-se em ridicularizá-lo sem argumentações plausíveis. Os responsáveis por este lamentável círculo vicioso tentaram conspurcar no passado, filmes como “Donnie Darko”, “Lost in Translation” ou até “Sideways”. O ano passado intentaram sobre “Brokeback Mountain”, mas tais barbaridades analíticas foram abafadas pelo corrupio de alvíssaras e pela marcha triunfal de uma película que não atinge a categoria de Obra-Prima, mas representa um requintado objecto cinematográfico.

“Brokeback Mountain” foi rapidamente rotulado como um «gay cowboy movie», mas apesar da efectiva abordagem da homossexualidade e das feições bem vincadas de western, tal etiqueta derivativa minora as complexidades de um enredo tão intrincado. Como todos os grandes filmes, este incorpora temas e substâncias universais numa história especificamente invulgar. Ao longo da história do cinema, o género western tem sido revisitado com temáticas modernas e metáforas sociais. Em 1963, Martin Ritt moldava a imagem do cowboy numa entidade capaz de seduzir e atemorizar de igual forma, no seu filme “Hud” (baseado no romance de McMurtry, argumentista de “Brokeback Mountain”). Em 1969, Sam Peckinpah explorou em “The Wild Bunch” os efeitos da violência invocando o massacre em terras vietnamitas. Depois do cowboy Kirk Douglas ter melindrado o ideal de masculinidade americano, servindo de mártir para uma causa em “Lonely are the Brave”, Ang Lee realiza uma das mais belas histórias de amor da história do Cinema, utilizando dois cowboys como protagonistas.



Quanto mais não seja, “Brokeback Mountain” merece crédito por estilhaçar diversos taboos. Desafia convenções cinemáticas, especialmente aquelas patentes em filmes de temática homossexual, bem como as convencionais maquinações de westerns e romances. O filme não é uma propaganda aos direitos homossexuais. Apresenta personagens como pessoas autênticas ao invés de causas, num comovente drama de proporções trágicas. É um tributo ao poder do amor, retratado com equitativas porções de prazer e dor. Vivemos inseridos numa cultura que adora rotular tudo e todos, mas apenas aqueles que vivem com múltiplas camadas de remela nos olhos ou vastos depósitos de cera nos ouvidos, poderão considerar controverso um filme que apresenta duas pessoas do mesmo sexo enamoradas. O essencial é o enlace de duas almas. É uma história de amor e traição, com elementos tão básicos e trágicos quanto aqueles apresentados em “Romeo and Juliet”, “Gone with the Wind” ou o recente “Un Long Dimanche de Fiançailles”, mas ao invés da guerra ou das desavenças familiares, as convenções sociais representam o factor que nega a união destes amados.

O argumento de Larry McMurtry e Diana Ossana é baseado no curto romance de Annie Proulx. Os momentos iniciais são maravilhosos, adornados pela majestosa beleza bucólica do Wyoming. Rodrigo Prieto (colaborador de Iñarritu na fotografia de “Amores Perros” e “21 Grams”) transforma a prosa numa expansiva poesia visual, capturando detalhadamente a solidão muda da vida no rancho. Gustavo Santaolalla (outro fiel colaborador de Iñarritu) compõe um tema perfeito e uma trilha sonora admirável. É uma daquelas raras composições que enleva plateias, esculpindo emoções na alma.

Heath Ledger (Ennis Del Mar) escava bem fundo na sua personagem, completamente imbuído pela forma como esta se move, fala e respira. À medida que inspira a fragrância da camisa que Jack guardava no roupeiro, suportamos o peso da sua dor numa tortura emocional de traços arrevesados. Jake Gyllenhaal (Jack Twist) prova novamente que não sabe representar mal. Com porções idênticas de energia e aluimento espiritual, transporta a sua personagem com elevada proficiência. Michele Williams (Alma) ilumina todos os cantos da devastação da sua personagem, Anne Hathaway (Lureen Newsome) fornece um desempenho competente e o restante elenco é minuciosamente apurado. Esta é uma marca explícita de Lee, um cineasta que sempre demonstrou a sua magistralidade na direcção de actores, inclusive no fabuloso “The Ice Storm”, arrancando as primeiras grandes interpretações de Tobey “aranhiço” Maguire e até Elijah “Frodo” Wood.

Ang Lee – o realizador camaleão que participou no inconsistente mas inquietante “Hulk” – constrói o filme com sensibilidade e bom senso. No seu drama da Guerra Civil, “Ride With the Devil”, revelou aptidões no retrato dos aspectos negligenciados no oeste americano. Tal engenho foi reajustado em “Brokeback Mountain”, combinando ainda a textura romântica de “Sense and Sensibility” e a composição visual de “Wo hu cang long”. Incute sapientemente doses de silêncio, confiando no poder visual e expressivo para traduzir os sentimentos mudos das suas personagens.

Ang Lee encontra-se no topo da sua sensibilidade cinematográfica. A casa de Ennis manifesta cores opressivas, reflectindo a tribulação e infelicidade do casal. O lar de Jack é decorado conforme as predilecções de Lureen, estabelecendo-o como uma figura desarticulada do seu próprio domicílio. Após a primeira noite de intimidade entre os dois, nuvens de tormenta acompanham a cavalgada de Del Mar, aludindo ao tumultuoso estado anímico em que se encontra. Existe uma cena que envolve o reencontro dos amantes, na qual transpomos um portal criado pelo cineasta. Ennis não consegue conter o seu entusiasmo, corre pelas escadas abaixo e lança-se nos braços de Jack, beijando-o. Alma assiste a tudo pela janela, comprovando impiedosamente a traição. Neste curto espaço de tempo e sem qualquer diálogo, Lee cria um mundo inteiro espelhado de forma eloquente na face dos actores envolvidos.

Apesar de algumas personagens secundárias desnecessárias e defeituosamente costuradas na história, da débil transição temporal e do exagero na representação do convencional «Marlboro Man» (tendo em conta o estilhaçar de convencionalismos que o filme acarreta), Ang Lee gerou uma obra soberba. “Brokeback Mountain” é uma concepção poética, visualmente elegante e liricamente contemplativa. É uma bela e trágica história de amor que lida com os trilhos enigmáticos do coração humano, engendrada com emoções reprimidas de amantes malogrados, consumidos pelo ostracismo da sua afeição.

18 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Ainda não o vi, pois tenho andado a ver uns tantos em atraso (como o 'wolf creek') :P Cumps

11:19 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

mais uma vez... wow :)
devo dizer que concordo com o que referiste, desde a forma como começaste até ao grande final.

de facto, tb ñ o considerei uma obra-prima, mas sem dúvida um bom herdeiro de clássicos que mencionas. li no Y a evocação d'Os Inadaptados e censurei-me a mim própria por nem me ter lembrado de tal antes...

vivemos inseridos numa cultura que adora rotular tudo e todos, mas apenas aqueles que vivem com múltiplas camadas de remela nos olhos ou vastos depósitos de cera nos ouvidos, poderão considerar controverso um filme que apresenta duas pessoas do mesmo sexo enamoradas. o essencial é o enlace de duas almas. que lindo! :)

de facto, tirando os seus 1ºs trabalhos em que dirigia actores asiáticos, acho que vi tudo o que Lee fez até agora, guardando uma especial predilecção por Crouching Tiger Hidden Dragon, mas reconheço os pontos em comum de mts dos seus filmes e de facto The Ice Storm que vi com uma idade talvx demasiado reduzida p o poder apreciar devidament é um excelente exemplo d direcção d actores.
E reafirme-se: os actores principais aqui estão magistrais!

é uma bela e trágica história de amor que lida com os trilhos enigmáticos do coração humano, engendrada com emoções reprimidas de amantes malogrados, consumidos pelo ostracismo da sua afeição.

rendi-me!

11:38 da manhã  
Blogger Francisco Mendes said...

Mário Lopes: Fico a aguardar a tua.
Cumprimentos!

André Batista: Realmente o cartaz contém bastantes títulos atractivos.
Cumprimentos.

H.: Mais uma vez, muito obrigado.
Da sua filmografia inicial aconselho-te vivamente "Hsi yen" (aka "The Wedding Banquet").

12:18 da tarde  
Blogger Francisco Mendes said...

Fazes bem. São raros os filmes que superam as nossas expectativas e admito que este não superou as minhas... no entanto é uma obra com uma sensibilidade imensa. Todos os intervenientes estão no topo da sua forma e isso reflecte-se cabalmente no produto final.

Abraço!

7:30 da tarde  
Blogger Nuno Cargaleiro said...

muito boa analise... a minha está para breve...

8:01 da tarde  
Blogger vera said...

É tudo isso e muito mais! :) Gostei muito da tua análise e das chamadas de atenção para a excelente fotografia (é mesmo, como lhe chamas, poesia visual) e da forma como vai muito para além das convenções, tanto do próprio género cinematográfico como das convenções sociais que aqui são absolutamente secundárias. É mesmo a história de amor de duas almas.
:)

10:25 da tarde  
Blogger brain-mixer said...

Se o filme é bom (e deve ser), não me importo muito. Mas preconceitos à parte, espero que nos Óscares ganhe um filme mais "duro", como Munique ou Crash.

10:11 da manhã  
Blogger gonn1000 said...

É um belo filme, basicamente concordo com tudo o que disseste.

12:02 da tarde  
Blogger Francisco Mendes said...

Nuno Cargaleiro: Fico a aguardar.

Vera: É uma belíssima obra poética. Ang Lee volta a dar cartas.

Brain-Mixer: Espero bem que esses dois sejam os grandes derrotados da noite!
Mas ligo pouco aos Oscares. Não os considero um exemplo de transparência... na sua história geral.

Gonn1000: Então será uma das primeiras vezes em que nos encontramos em concordância... ;)

1:00 da tarde  
Blogger Unknown said...

achei seu blog na net. muito bom.
também tenho um blog sobre cinema e pus um link lá para o seu, se não for problema.
flw

7:52 da tarde  
Blogger Francisco Mendes said...

Obrigado pela visita e pelo link. Passarei pelo teu, assim que tiver mais disponibilidade.

Cumprimentos.

8:04 da manhã  
Blogger Pedro_Ginja said...

Mais um filme que achei agradável.

Sem dúvida, não me tocou, como os filmes da minha vida mas achei realmente uma bela história de amor.

E adoro quando um filme acaba em aberto. Só demonstra uma grande sensibilidade...
Agora algumas pessoas na minha sala não aguentaram e ao fim da famosa cena de sexo(dura apenas cerca de 20 segundos) sairam da sala 4 pessoas!!

E vocês tiveram experiências semelhantes nas vossas visualizações???

11:06 da manhã  
Blogger brain-mixer said...

Francisco, estamos em rota de colisão! :P

12:20 da tarde  
Blogger Francisco Mendes said...

Pedro: Eu tive uns quantos pacóvios, que aparentavam ter tido a primeira autorização dos papás para sair com os amigos e riram durante quase todo o filme. Há realmente muita criancinha na fase da adolescência.

Brain-Mixer: Podes crer que sim... :P

12:57 da tarde  
Blogger Nuno Cargaleiro said...

Finalmente!!!... A minha opinião:

http://movietvaddicted.blogspot.com/2006/02/crtica-brokeback-mountain.html

:) concordamos com bastantes pontos

6:28 da tarde  
Blogger Francisco Mendes said...

É verdade. Concordamos na maioria dos pontos apresentados.

12:56 da tarde  
Blogger Cataclismo Cerebral said...

Um belo filme sobre... o poder da negação! Para mim, este é o tema principal do filme. Rotulá-lo com um western gay é extremamente redutor, principalmente quando o filme contempla tantas nuances. A negação do amor por parte da personagem do Heath está bem patente na sua expressão física: o rosto contraído, o olhar para baixo por forma a evitar o confronto olhos nos olhos estão muito conseguidos (o Heath Ledger afirmou que desenvolveu a personagem a partir da ideia de um punho cerrado e creio que foi uma abordagem correcta). Depois, a outra personagem principal: a montanha, esse lugar idílico, único sítio onde as personagens se podem expressar e ser quem são realmente. Enfim, um prodígio de filme.

Abraço

4:58 da tarde  
Blogger Francisco Mendes said...

Bela menção da outra personagem: a montanha. E que bem que Lee a filma...

Abraço!

10:19 da manhã  

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