Já lá vão... 40 anos
“Da Zui Xia” é uma película influente de Artes Marciais, realizada pelo pioneiro King Hu. Bem antes de “Wo hu cang long” (“O Tigre e o Dragão”) ou “Kill Bill”, Hu lançava à terra as sementes que fariam germinar obras como as de Ang Lee e Quentin Tarantino. Estabelecido na China do Século XIX, o filme apresenta uma heroína misteriosa (soberba Cheng Pei-pei) pelejando para resgatar o filho do governador de um grupo de raptores. Apoiando-se na meticulosa realização de Hu e no inspirador desempenho de Cheng Pei-pei (a ama diabólica em “Wo hu cang long”), o filme alcança o pináculo como um dos melhores do género, apesar da sua história não causar tanto impacto hoje em dia, graças à reprodução massiva dos seus elementos inovadores. Incrustando no seu âmago uma tradição dramática, “Da Zui Xia” move-se de forma operatória e repleta de dinamismo estilístico que desafia a realidade.
Ainda me recordo do meu primeiro contacto com “Il Buono, Il Brutto, Il Cattivo”. Era a noite de 31 de Dezembro e experimentava os primeiros passos na fase da pré-adolescência. As doze badaladas soaram e enquanto alguns amigos se divertiam nas festas familiares, outros nos bares e uns quantos na praia, encontrava-me solitariamente sentado em frente a um televisor que emitia o canal público, aguardando na escuridão da sala o início da transmissão de uma das Obras máximas do mestre Leone. O que para a maioria será um comportamento deprimente, para mim foi uma experiência inesquecível. “Il Buono, Il Brutto, Il Cattivo” culmina de forma exímia a Trilogia dos Dólares (ou Trilogia do Homem sem Nome), do ilustre Sergio Leone. Clint Eastwood («o bom») representa um caçador de prémios vigarista que sistematicamente captura e liberta Eli Wallach («o vilão») para subir a parada da sua captura. Quando os dois trapaceiros casuais se unem na procura de ouro roubado, surge o oportunista Lee Van Cleef («o mau») para complicar a demanda.
Leone compõe cada imagem com a minuciosidade na qual um pintor pincela uma tela e inventivamente montou o produto final com cortes ao som da música de Morricone. Auxiliado pelo memorável choro do coyote, patente na admirável composição de Ennio Morricone, Leone oferta um Épico de Avareza, num estilístico recital de ironia dramática, ornamentado com humor negro e personagens injectadas numa emotividade à base de testosterona.
“Blow-Up” é um exercício de estilo de Michelangelo Antonioni, que no seu primeiro filme em língua inglesa, imortaliza Londres focado no dissolvido fotógrafo Thomas (David Hemmings), que poderá ter testemunhado um crime através das lentes da sua máquina. À medida que tenta desvendar o mistério, Thomas revela fragmentos da realidade sem conseguir deslindar a verdade absoluta. Inspirado na curta história de Julio Cortázar, “Las babas del diablo”, Antonioni exala baforadas artísticas que serviram de inspiração para um rebanho de cineastas inventivos. Tal como “La Dolce Vita” de Fellini o filme move-se como uma sátira ao sofisticado vácuo moderno, perceptível no desalmado mundo da moda ou nas frívolas deambulações juvenis. É uma fascinante meditação abstracta sobre a lógica, apresentando as linhas esbatidas da subjectividade e da percepção, mesmo utilizando provas fotográficas. As preocupações de Antonioni são esotéricas e de forma abnegada confia no intelecto do espectador para esquadrinhar o conteúdo fílmico, alcançando interpretações particulares através do poder perceptivo. Será que as nossas percepções terão validade? Poderemos confiar nos nossos sentidos? Será que a verdade sai beliscada quando outros não partilham a mesma experiência? Quando no sublime final, o fotógrafo vagueia pela relva até desaparecer como o cadáver do parque, Antonioni rubrica a sua peculiar assinatura, levando o protagonista a escolher o grupo ilusório em detrimento da realidade desoladora.
Após quarenta anos de existência, “Persona” de Ingmar Bergman, permanece incólume à erosão temporal graças à intensidade enigmática que o resguarda. No seu filme de 1963, “Tystnaden”, Bergman remata-o com um desfalecimento comunicativo entre os dois protagonistas. Este colapso linguístico é um dos temas centrais de “Persona”, uma obra que assinala uma mudança peremptória no rumo da filmografia de Bergman, afastando-o dos diálogos auto-reveladores e direccionando-o numa exploração do meio cinematográfico e da fundura do subconsciente humano. O autor sueco defendia que um filme deveria comunicar estados psíquicos além da mera projecção de imagens e graças a este imaginário de reflexos e fusões pervertidas, “Persona” encontra-se embebido num suco de imaginário surreal e sequências quiméricas, tornando-se difícil distinguir a fantasia da realidade na sua tradução linear. É uma das obras mais complexas de Bergman, sendo que o retrato caótico existencial será desconfortável e frustrante para muitos, mas o poder meditativo da sua estrutura temática, permite que o espectador preencha parcialmente espaços em branco, resultando numa Obra-Prima contemplativa. Solidamente assente como um dos melhores dramas humanos da história da Sétima Arte, possui uma força dinamizada pela dança psicológica entre a enfermeira psiquiátrica Alma (Bibi Anderson) e a enigmática doente Elizabet (Liv Ullmann). Cada nuance emocional é espelhada inesquecivelmente na expressividade facial destas actrizes e respostas fáceis encontram-se ausentes no delicado bailado de cumplicidade entre as duas protagonistas. “Persona” poderá ser encarado como uma reflexão metafórica da relação entre o artista e a audiência ou como uma metáfora para o processo da psicanálise, mas cabe ao observador projectar um fragmento seu durante o visionamento para assimilar a matéria que se apresente incongruente. Pinceladas numa tonalidade intimista, as imagens adquirem refulgência poética enquanto mascaram os nossos medos remotos e as nossas inseguranças inomináveis.