Em 1964, o escritor Roal Dahl lançava “Charlie and the Chocolate Factory”. Um clássico detentor de boas porções de entretenimento moral acondicionadas numa visão singular. O autor detestou a adaptação cinematográfica de Mel Stuart em 1971, mas acredito que amaria a Burtonização do seu clássico (aceitando a liberdade tomada pelo cineasta, acerca do pai de Wonka). Burton e Dahl são idênticos no sentido de humor levemente distorcido e além disso, este filme é portador de uma imensa alma. Esta não representa a primeira “cooperação” entre Dahl e Burton, pois o realizador produziu a adaptação animada “James and the Giant Peach”, realizada por Henry Selick.
O filme é sobre o excêntrico Willy Wonka (dono de uma fábrica de chocolate que há 15 anos não é vislumbrada por nenhum forasteiro e onde opera a sua singular equipa de Oompa-Loompas) e Charlie um rapazinho de bom coração nado numa pobre família, que vive sob as sombras da extraordinária fábrica. Charlie sonha com os chocolates que adora, mas não tem possibilidades para comprá-los. Há muito isolado da sua família, Wonka lança um concurso para exibir o seu império de doces, ocultando 5 bilhetes dourados nas suas tabletes. Cinco crianças arrebatam o premiado bilhete que lhes permitirá descobrir o misterioso mundo de Wonka. Charlie (miraculosamente seleccionado) é a mais pobre e pura das crianças, depois existem o guloso badocha Augustus Gloop, o viciado em videojogos e computadores Mike Teavee, a competitiva Violet Beauregarde e a mimada Veruca Salt. Deslumbrado visão após visão pela peculiar indústria, Charlie é sugado pelo fantástico mundo de Wonka, onde várias surpresas o aguardam.
“Charlie and the Chocolate Factory” marca o regresso ao material original de Dahl e mereceu o selo de aprovação da família do escritor. A mágica viagem ministrada por Tim Burton à inefável fábrica de chocolate de Willy Wonka acarreta pitadas de surreal e bizarro, com doses saudáveis de grotesco. É uma fusão do mundo de Oz com o universo Disney.
A obsessão de Burton em Wonka funciona como o maior poder e fraqueza do filme. Se por um lado o charme bizarro e toda a perversidade da personagem são evidenciados saborosamente, o facto de Burton se focar demasiado em Wonka, rompe com o agente enigmático da sua identidade e fá-lo perder aquele misticismo que o torna delicioso. O maior problema do filme é o facto de sugar todo o mistério, revelando todos os segredos e respondendo a todas as questões.
Johnny Depp (Willy Wonka) e Freddie Highmore (Charlie Bucket) demonstram uma química fantástica, já patenteada no filme “Finding Neverland” de Marc Forster. Highmore exibe maturidade na forma como Charlie ilumina o caminho de Wonka, mas este é um filme para Johnny Depp explanar o seu singelo lado acriançado. É uma fantasia que flutua na energia irreal que ele extrai de quase todos os seus papéis. Ele é uma daquelas inenarráveis forças incapazes de serem reduzidas a um simples padrão. Imensas “super-estrelas” interpretam o mesmo papel filme após filme, modificando simplesmente o nome da personagem, mas Depp assimila completamente a figura que retrata.
Johnny Depp foi criticado ferozmente por alguma crítica americana, pelo seu retrato se aproximar demasiado da figura de Michael Jackson (apesar do actor afirmar que se baseou em Howard Hughes). Será mesmo idêntico? Sem dúvida, os maneirismos são manifestamente semelhantes. No entanto, estes americanos conseguiriam verificar referências a Jackson numa estátua com o nariz partido, ou até no queijo derretido de uma qualquer fatia de pizza. A obsessão pelo artista pop é doentia e deveriam utilizar todas as suas palavras para glorificarem o seu excelso actor: Johnny Depp. Numa admirável performance, Depp supera a fabulosa interpretação de Gene Wilder e projecta um diferente retrato de Wonka. O desatino eufórico é tremendamente divertido por ser esticado ao limiar do absurdo. Os amplos sorrisos delineados na sua face, alternados pelo semblante e olhar solitário revelam o domínio de Depp na arte de representar.
O imaginário do filme irá contribuir para elevá-lo a clássico instantâneo: os ângulos dramáticos da casa de Charlie tornam-na singular, num momento visual melífluo e memorável que relembra o expressionismo alemão da Obra-Prima artística “Das Kabinett des Doktor Caligari” (1919) de Robert Wiene e até a curta-metragem “Vincent” de Burton; a cascata e o rio de chocolate da fábrica; o barco Cavalo-Marinho; os cogumelos gigantes à “Alice no País das Maravilhas”; o elevador de vidro… enfim, tudo exibido num extravagante panorama Burtoniano. A excepcional aptidão de Burton é criar autênticos rebuçados para os sentidos através de vívidos ambientes
bigger than life.
Neste “Charlie and the Chocolate Factory”, Burton providencia cenários coloridos e guarnecidos com uma mística vibração que convoca o espectador numa experiência intimista. Os espaços permutam entre o expressionismo alemão, o gótico negro e deflagrações de cores primárias. Os cenários ganham tanta vida que adquirem o estatuto de personagem e certos itens são tão deleitosos que desejei ardentemente efectuar uma visita física à fantástica Fábrica. Para evocar este utópico ambiente, Burton beneficiou da sensibilidade fotográfica de Philippe Rousselot (numa terceira colaboração após “Planet Of The Apes” e “Big Fish”) para capturar os cenários primorosos concebidos por Alex McDowell (“Fight Club”, “Minority Report”, “The Crow”). Danny Elfman oferece a composição musical e a voz às músicas (criadas também por ele) estranhas dos Oompa Loompas. As músicas dos Loompas não têm aquele arrebatamento patenteado na animação “The Nightmare Before Christmas”, mas algumas cenas vêem intensificado o negrume, a jocosidade e a excentricidade graças à intervenção da composição de Elfman.
Existem múltiplas referências ao longo do filme, desde o já referido “Das Kabinett des Doktor Caligari”, “Ben-Hur” na cena do barco Cavalo-Marinho, “Psycho” e um enorme tributo a “2001: A Space Odyssey” (na cena da Sala TV), onde são utilizadas as imagens da cena dos primatas com uma barra de chocolate substituindo o monólito de Stanley Kubrick. Burton presta igualmente homenagem aos seus anteriores filmes. A profunda mensagem de “Charlie and the Chocolate Factory” poderá etiquetá-lo como um “Big Fish” versão infantil e o mais explícito tributo refere-se à cena em que Wonka corta as fitas da Fábrica, numa pose que evoca “Edward Scissorhands”. As personagens de Burton (Edward Scissorhands, Pee-Wee, Ichabod Crane, e agora Willy Wonka) vivem sozinhos numa metáfora de isolamento, separados das figuras horrendas/lendárias dos seus pais (protagonizadas anteriormente por Vincent Price, Martin Landau e agora Christopher Lee). Os filmes de Burton são na sua essência retratos de desajustados com sonhos.
Quando Charlie adquire o bilhete dourado, já Burton conseguiu gerar um genuíno ambiente aprazível e aconchegante, aquela envolvência que muitos realizadores nem concebem no próprio clímax. Aqui trata-se apenas do início da diversão. A leve toada do filme, desembrulhando divertidas piadas ao longo da sua duração, contagia e estampa um agradável sorriso, até no rosto mais carrancudo.
Para além dos malucos e inventivos doces de Wonka e dos animais de estimação exóticos, o que deverá importar para as crianças é a família, base do carácter de qualquer um. E é esse o significado de Charlie Bucket, o miúdo pobre e cheio de sonhos, o símbolo da inocência, prova de que luxo e mimos não bastam para criar uma criança. O que pode transparecer banal torna-se divertido e adulto graças às psicadélicas cores, às espantosas engenhocas da fábrica de Wonka, ao incondicional coração e alma que o filme extravasa. O Chefe Mestre Tim Burton combinou deliciosos ingredientes para a confecção de uma saborosa fábula.