"The Descent", de Neil Marshall
Class.:
"O medo tem muitos olhos e enxerga coisas no subterrâneo." (Miguel de Cervantes)
Após uma incursão pelas trevas, calcorreando e estremecendo numa escuridão física e anímica, começo lentamente a pestanejar os olhos, ajustando a visão face à súbita claridade. Sacudido para a realidade quotidiana, verifico que já não me encontro na aterrorizante gruta… encontro-me depositado numa sala de cinema e perante o meu olhar, os créditos finais de uma das melhores experiências cinematográficas do ano, desenrolam os valores de produção. Permaneço atónito e assombrado pelo sublime final ambíguo e pela sua multiplicidade interpretativa. De repente, o título assola o meu espírito e impregna-se na minha memória: “The Descent”!
Em 2002, Neil Marshall iniciava um culto com “Dog Soldiers”, uma exótica mescla de horror e comédia. Neste “The Descent”, palmilha um diferente trilho, utilizando um ambiente opressivo numa desesperada luta pela sobrevivência. Numa remota montanha, seis raparigas encontram-se para a aventura anual, uma viagem às artérias da terra. O grupo sonda o sistema de uma caverna, desfrutando o bizarro e gracioso panorama. Distraídas pela paisagem, são vítimas de uma catástrofe: uma súbita derrocada barra-lhes a superfície e as jovens ficam aprisionadas no interior da caverna. As raparigas vêem-se obrigadas a encontrar uma saída para sobreviver, mas quando alcançam uma inexplorada câmara, o grupo começa a desintegrar-se.
Marshall cria seis distintas personagens femininas, imbuídas num carácter intrigante, fugindo aos estereótipos do género onde as meninas deslizam com rótulos de “queixinhas”, “choramingas”, “galdéria”, “rameira”, “birrenta”, ou “histérica”. O elenco é excelente e as raparigas não necessitam de filmagens sensuais para comandar a atenção. Possuidoras de uma índole mutável, quer heróica, desprezível e aterradora, as actrizes ministram um desempenho denso.
Bem antes da deflagração de um ambiente infernal, Marshall executa um formidável trabalho instalando tensão, claustrofobia e um sinuoso sentido de malícia através de sombras voláteis, isolamento extremo e passagens claustrofóbicas. Aqui não existe edição à MTV, nem falsos sustos. É construído um ambiente asfixiante enquanto visionamos as raparigas espremendo-se pelas passagens comprimidas, lutando contra o tempo e contra as trevas que degradam o seu estado mental. As interpretações são surpreendentemente espantosas, a acção fantástica e alguns momentos de apurado humor negro aliviarão de forma ténue a infernal tensão que deixará muito espectador quase sem unhas.
Os efeitos especiais são simples mas eficientes, com menção especial para uma das fracturas expostas mais suculentas da história da Sétima Arte. Servem devidamente o propósito de tornar “The Descent” uma maratona de malevolência, onde muitos deixarão as marcas das unhas nos apoios dos respectivos assentos. A fotografia é espectacular e as cenas filmadas em infra-vermelhos são soberbas, incutindo realismo. O argumento de Marshall é muitíssimo bem elaborado, prestando a devida atenção na edificação das personagens, mantendo a tensão progressiva. A sua configuração claustrofóbica é magnífica, adornando-a numa cerrada escuridão e estruturando-a com luzes diminutas patentes em lanternas, tochas ou luminosidade fluorescente. A utilização da visão nocturna proporciona uma das cenas mais inspiradas da História do Cinema de Terror.
As evocações a “The Shining” de Stanley Kubrick (numa filmagem aérea de uma estrada serpenteando através da floresta) e “Apocalypse Now” de Francis Ford Coppola (uma personagem emergindo lentamente a cabeça numa superfície líquida) reforçam a alusão a mentes desorientadas. Este é um filme que utiliza referências cinematográficas (sendo “Carrie” de Brian de Palma a mais impressionante) com o intuito de homenagem e salientando “The Descent” numa plataforma temática. Uma mão emergindo do solo, além de aludir a “Evil Dead” de Sam Raimi, engloba o imaginário de inúmeros filmes de zombies, assinalando alegoricamente a personagem como uma morta-viva.
Neil Marshall possui o olho concludente para um memorável imaginário. Algumas imagens repulsivas e asquerosas impregnar-se-ão na lembrança da audiência numa validade indeterminada. Ele domina com uma perspicácia e profundidade invulgares o seu género, transcendendo-o para uma plataforma de engenhosa, inventiva e esmerada cinematografia. A sua carreira vê cimentado e multiplicado o seu culto de fãs e ao contrário do título deste filme, encontra-se numa ascendência merecida.
Após meros minutos de visionamento, “The Descent” fará espectadores pularem dos assentos. O seu brutal poder é manifestar a forma como o medo consome sentidos e lealdades. Os sustos balbuciarão audiências na definitiva detonação dos momentos críticos, onde o ambiente atinge proporções epilépticas e o gore não autoriza espaço para a imaginação, apoderando-se dos pesadelos mais recônditos. O filme é uma metáfora para a descida de uma mente perturbada rumo a um estado de desespero, raiva e pavor primitivos. Somos abandonados por Marshall na escura caverna da sala de Cinema e seja qual for o trilho que escavemos no denso labirinto, apenas nos iremos deparar com horror na sua genuína e visceral disposição. “The Descent” é uma nutritiva fatia gore com polpa de pura excelência.