Class.: Poesia Gore-gásmicaSob o fulgor dourado de um céu que aparenta reflectir o ouro Persa clamando pelas suas vidas, um pequeno grupo de valentes Espartanos, esculpidos pela própria Terra, desafia o presságio de morte cravando lanças no peito do inimigo com graciosidade operática e empilhando um número ilimitado de cadáveres Persas para a edificação de uma muralha defensiva. Amontoado esse que evoca a primeira imagem do filme: uma pilha de esqueletos que representa os rejeitados filhos Espartanos, aqueles que não preenchiam os “requisitos” para a inserção na vida marcial. Todo este radicalismo estilístico torna-se fulcral no retrato dos extremos da História. Com “
300”, Zack Snyder prossegue a experiência Frank Miller, transferindo para o Grande Ecrã a intensidade da muscular narrativa visual dos seus Romances Gráficos. Em vez do
neo-noir de “
Sin City”, “
300” mergulha na mitologia da Batalha das Termópilas, travada no Verão de 480 a.C., uma das batalhas mais importantes (e ignoradas) da Humanidade, que demonstrou como não vence uma batalha apenas aquele que destrói o exército inimigo, mas sim aquele que cumpre seu objectivo. Pois ao recusarem a escravidão, ao combaterem pela Liberdade detendo os Persas nas Termópilas, os Espartanos permitiram a salvação de Atenas e, consequentemente, o nascimento da Civilização Ocidental.
Como todas as grandes histórias que são narradas desde o raiar do Homem, “
300” começa à volta da fogueira, num conto extraordinário de Honra, Dever e Glória. Ciclicamente o Cinema prova a sua idoneidade na absorção de qualquer outra forma de Arte. O filme captura o visual impressionista, as mutações de perspectiva que elevam a emoção e, sobretudo, a Essência do material de origem. E aqui triunfa o exército de Snyder com os respectivos
designers, coreógrafos e técnicos que colaboraram na magnífica estilização. Com especial realce para a robusta composição sonora de Tyler Bates, que depois de já ter cooperado com Zack Snyder na partitura do
remake de "
Dawn of the Dead", elabora uma trilha original e plena de dissonâncias, com melodias étnicas que circunscrevem numa envolvência etérea a acção entre Espartanos e Persas. A reacção emocional quanto ao heroísmo e sacrifício Espartano é accionada pela intensidade da percussão, catapultada pela utilização da sonoridade
Metal, que torna a acção temporalmente contínua. A interpolação da trama protagonizada pela Rainha acaba sendo algo desnecessária à compreensão e desenvolvimento da trama, interrompendo inclusivamente a densidade da acção principal, mas de certa forma, Snyder e Miller partilham a mesma filosofia. A narração de David Wenham poderá parecer dispensável aos mais desatentos, mas serve um propósito. Não existe um profundo e típico desenvolvimento de personagens ou diálogos, pois o filme dá vida ao conto de Dilius. Bem antes da Literatura e do Cinema, o Contador de Histórias era uma das personalidades mais importantes da tribo. E ao esboçar heróis e vilões com o mínimo detalhe, Snyder acentua a aura de Lenda, relembrando que não estamos a ver História, mas a vislumbrar o despertar de uma Memória. Quem preferir realismo e reverência aos factos, que sintonize o canal televisivo
História. Mas quem desejar uma experiência vibrante que amplifica o poder que uma Sala de Cinema pode ofertar, em pleno desabrochar de uma nova forma de Arte, então, sejam bem-vindos a “
300”.
Filtrado até ao âmago, “
300” é um supra-sumo de imagens, estilo e atitude. Pode não ofertar torvelinhos narrativos convencionais, mas como espectáculo visual é imponente, majestoso e imperdível. Nas cenas que reproduzem as batalhas épicas reina uma harmoniosa amálgama de coreografia fluida com pinturas 3-D. Desde o excelso marco estabelecido por Peter Jackson com “
The Lord of the Rings”, algumas disformidades cinematográficas, desde “
Troy” a “
Alexander”, tentaram reviver o empolgante estrépito do choque entre espadas e escudos, mas o resultado foi um monumental bocejo. Snyder triunfa na criação de batalhas distintas, repletas de acção cuja coreografia de vibrações telepáticas merece contemplação minuciosa, com especial realce para a primeira investida, na qual os Espartanos lutam como uma unidade, uma falange na qual cada guerreiro protege o homem ao seu lado. A realização atinge pícaros de excelência neste capítulo. O dinamismo evita possíveis sensações de história antiquada, acentuando o seu cariz eterno. Cada fotograma é planeado. Todos os participantes têm a sua função e quem desviar a atenção para o segundo plano, irá verificar uma notável profundidade de campo, constatando nos figurantes as exactas porções de vigor empreendidas pelos protagonistas. Existem mais cabeças decepadas que num bom dia da Revolução Francesa, mas o caos é imprescindível. Tudo é calculado para provocar respostas emocionais quase primitivas. A edição frenética é evitada em detrimento da ferocidade de bailados de combate e Snyder utiliza instintivamente a câmara lenta para capturar e honrar o atleticismo da contenda, ofertando tempo ao espectador para sorver os visuais arrebatadores que complementam o conflito.
Aventureiro, intuitivo, ousado… pessoalmente, considero o trabalho de Zack Snyder uma arrojada obra de Arte. Em “
300” servem-se de um facto real, transformando-o em mitologia, ao contrário do mais comum, que é tornar realidade um feito mitológico. Torna-se impossível ficar indiferente a imagens como a Árvore dos Cadáveres, como a sombra do lobo morto pelo jovem Leónidas no desfiladeiro aludindo à ferocidade do mundo exterior, como a dança bruxuleantemente sensual da Oráculo, ou como a chuva que açoita os Persas e baptiza os Espartanos para o seu derradeiro combate. Deliciosamente leviano, o seu encanto estético advém do contraste entre cores extremas. Num território helénico que aparenta ter sido demolhado em chocolate, a noite recebe os frios tons metálicos das lâminas das lanças e espadas, enquanto o dia se encontra banhado no bronze quente dos escudos e elmos Espartanos. Canalizado pelo seu inquestionável fluxo poético, o próprio sangue não jorra, mas irrompe em fracções que se assemelham a pétalas de rosas. Com “
300”, Zack Snyder reescreve o conceito de Épico com artísticas penadas audiovisuais.