Class:
Audiovisual Transcendental
“Last Days” lida com temas abstractos e metafísicos, encerrando a Trilogia da Morte de Gus Van Sant, iniciada com “Gerry” e secundada por “Elephant”. Em “Gerry”, a morte é acidental, causada pela despreocupação. Dois amigos deambulam pelo deserto, perdem-se e nunca mais são encontrados. Em “Elephant”, a morte é apresentada como um assassínio deliberado, mas sem significado. Dois amigos elaboram um plano para matar estudantes e professores da sua escola e acabam igualmente aniquilados. Agora em “Last Days”, a morte imerge uma personagem cujo frágil ego é incapaz de se identificar com os cânones da existência.
Na sociedade contemporânea, a morte de uma personalidade famosa é alvo de uma intensa análise especializada, onde são decifrados motivos, causas, origens e disposições com uma tremenda facilidade. Van Sant foge aos alarmantes arquétipos e perpetua um longo estudo silencioso. Vários livros e documentários foram apresentados, mas nenhum atinge o artístico e sonhador “Last Days”, uma meditação existencial sobre Kurt Cobain.
A sua cadência glaciar irá ser abominada pela audiência comum. Consigo contar pelos dedos da mão, os espectadores que irão reverenciar a qualidade hipnótica e poética desta viagem fascinante à torturada psique de um indivíduo. “Last Days” apodera-se do ícone de Kurt Cobain num filme sobre solidão, desespero, alienação, depressão e futilidade. A aproximação oblíqua e elíptica de Van Sant, bem como o ritmo lento, irão desesperar um número copioso de espectadores convencionais. Mas o que significa realmente movimento? Será algo que apenas conseguimos constatar através dos saltos, das mudanças abruptas de ângulos, numa frenética edição com mais cortes que a face de Eduardo Mãos-de-Tesoura? Van Sant tem uma visão mística da vida e expõe o quotidiano de um ser humano, no qual o mais subtil acto representa uma iniciação ritual. As actividades de Blake representam de certa forma as nossas acções quotidianas, enquanto nos encaminhamos para o inexorável fim.
A manipulação do audiovisual por Van Sant é fenomenal. Os planos meticulosos, a ambígua e bela edição, o som intrincado e o imaginário religioso adornam esta Obra-Prima. A fusão de realismo com sentimentos e fantasia é distinguida pelo engenho de Van Sant no tratamento da imagem, onde é auxiliado pelo belo trabalho fotográfico de Harris Savides. O estilo visual evoca o extremismo de alguns realizadores europeus e asiáticos, incluindo o húngaro Béla Tarr (admitida fonte de inspiração para Gus Van Sant, responsável por “Sátántangó” e “Kárhozat”, por exemplo), o grego Theo Angelopoulos e o asiático Hou Hsiao-hsien. O filme também evoca “Dead Man” de Jim Jarmusch, cujo enigmático herói se chamava William Blake.
A música derrama raiva, desespero, sofrimento e sede de morte. A enraivecida primeira música, “That Day”, acompanha um ténue movimento de câmara e reflexos de folhas açoitadas pelo vento que lhe incutem uma portentosa energia subsónica. Enquanto a segunda, “Death to Birth”, guarnece um dos momentos mais plangentes do filme. Blake senta-se e expira uma poderosa e moribunda canção, descobrindo pavorosamente que nem a sua música consegue provocar um impacto na sua essência.
A iconologia religiosa encontra-se cuidadosamente dispersa, desde um simbólico baptismo inicial, ao vulto de Blake que ostenta aquela imagem propalada de Cristo, passando pela aparição de dois Mormons e uma peculiar ascensão que também evoca um marco na história do Rock: “Stairway to Heaven”, dos Led Zeppelin.
Blake vagueia numa espécie de purgatório particular. Assistimos ao crepúsculo da sua alma, enquanto a escuridão assola lentamente o seu âmago. Seres flutuam como fantasmas, entrando e saindo da sua casa, completamente ignorados por Blake. Ele evita todos, desvanecendo paulatinamente deste mundo, sugado pelo seu vórtice interior. Van Sant adopta uma clínica observação distante dos eventos, permitindo que a audiência desemaranhe individualmente o nó que ata o mistério da personalidade humana, respectivas motivações e simbologia enigmática. Que se encontrará na caixa que Blake desenterra? Drogas, balas? Qual o significado do nome Blake? Sendo uma clara alusão ao poeta William Blake do século 18, cuja esposa proferiu: «A companhia de Mr. Blake é quase nula. Ele encontra-se sempre no Paraíso».
Um dos temas que o filme aborda é o isolamento e assim como ninguém se consegue aproximar de Blake no filme, também nós o observamos de longe. Van Sant e Savides isolam Blake, filmando-o distanciadamente com mestria e permitindo cogitações individuais na audiência. Os comentários da estrela rock são vagos murmúrios e um dos poucos perceptíveis funciona como um autêntico mantra: “I lost something on my way to wherever I am today”. O enviesado sentido de interior e exterior, fomenta a concepção de um autêntico limbo.
“Last Days” não expõe como nem porque morreu Cobain, mas incita a reflexão sobre como a morte poderá estar associada a uma época onde a espiritualidade almeja cinicamente multidões. A sociedade amamentou jovens que não vivem satisfeitos com a sua existência. Por múltiplos e diversos seres que os circundem, a solidão é uma condição inquebrantável. Nada consegue dissipar o espesso nevoeiro gerado pelo profundo tormento interior. São adolescentes que pelo menos uma vez na vida, ambicionam desaparecer e apesar da morte física não surgir, algo perece no âmago do indivíduo. Jovens que se prostram no leito dos seus quartos, ensopados numa brutal depressão, ansiando pelo derradeiro beijo da morte.
“Last Days” captura imaculadamente a facilidade do tombo num trágico abismo de depressão, solidão, desespero e abuso de drogas, no qual malogradas almas jazem. Entretanto, o Sol ainda desponta no horizonte, a brisa ainda afaga a folhagem das árvores, os pássaros celebram uma nova alvorada chilreando e a vida continua. Gus Van Sant alcançou um sublime Nirvana.