O Bom, o Mau e o MisantropoA época áurea do
Western expirou há muito. Longe vão os tempos em que existiam realizadores que reescreviam as regras deste género, como o sublime Sergio Leone em meados da década de 60, numa altura em que Hollywood considerava o
Western um artefacto nostálgico e fatigante. Leone reinventou o género com espectaculares composições em ecrã largo, como o notável “
Il Buono, Il Brutto, Il Cattivo”. Hoje em dia, já não se encontra audácia nem engenho para abordagens revisionistas à mitologia deste género, como o último
Western de Clint Eastwood: “
Unforgiven”. Restam-nos filmes como “
Brokeback Mountain”, “
A History of Violence” e este “
The Proposition”, para sermos presenteados com salutares aparições espectrais dos elementos cativantes deste género.
Na abertura de “
C’era una volta il West”, outra Obra-Prima de Sergio Leone, o cineasta foca-se nos pequenos detalhes (uma mosca incómoda, o estalar de dedos, o pingar de água) com uma impetuosidade contida que antecede a chegada da personagem de Charles Bronson e o subsequente tiroteio. “
The Proposition” também crava as garras na plateia, logo na cena inicial. Mas ao invés da sublime contenção de Leone, somos imediatamente arremessados para o meio de uma chuva de balas, sem qualquer ideia sobre o partido que devemos tomar. A tensão desta sequência claustrofóbica sobressalta o espectador, alertando-o para os ritmos excepcionais que se seguem.
“
The Proposition” dá vida a uma porção da violenta história australiana, num conto ambíguo de vingança, rancor, lealdade e honra, embrulhado numa brutalidade plástica e num visual extasiante. Trata-se de um filme excepcional, com uma história moralmente densa, valores de produção admiráveis e um elenco perfeito, adornado pelas interpretações valorosas de Guy Pearce, Danny Huston e Ray Winstone, entre outros. Apesar da manipulação de certos factos verídicos, “
The Proposition” desenrola os eventos numa mística dicotomia. Todos os intervenientes possuem vertentes admiráveis e execráveis. Os heróis conseguem ser tão cruéis como o mais desprezível bandido e os vilões mantêm o seu código de moralidade. Após o caótico tiroteio inicial, o capitão Stanley e seus homens capturam dois dos três irmãos Burns (Charlie e Mike), um gang acusado de actos de violência medonha. Envolto no zunido de moscas, Charlie Burns recebe uma proposta irrecusável de Stanley: em troco da liberdade do seu amado irmão mais novo, Mike, deverá perseguir e matar Arthur Burns, o seu nefário irmão mais velho.
John Hillcoat compõe consistentemente momentos chocantes, poderosos, espirituais e harmoniosos, numa serenidade estóica enquanto nos orienta numa jornada infernal. A cena que melhor realça esta destreza, surge quando o solitário Mike é violentamente chicoteado, enquanto o seu irmão mais velho escuta uma canção transcendental no seu covil. Existe uma dança bruxuleante entre a pura beldade e a ímpia fealdade. Graças à sua violência estripadora, Sam Peckinpah havia superado Leone no rebentamento de cápsulas de sangue, mas Hillcoat intenta chegar mais longe, convertendo uma impiedade sanguinolenta numa forma de arte. Os tons encarnados do inefável momento crepuscular dissolvem-se em poças de sangue, enquanto vítimas de uma investida ferina soltam os últimos sopros de vida. Benoit Delhomme capta em fotografia um árido inferno como pano de fundo, com ambientes langorosos e repulsivos que acrescentam peso ao tormento solitário que oprime o cadavérico Charlie. Mesmo as cenas arrebatadoramente belas são ornamentadas com poeira, pinceladas numa luminosidade parca e envoltas na composição sonora sussurrante de Cave.
O segundo argumento do músico de culto Nick Cave é um espelho do seu vulto sombrio. Numa penada brutal, Cave ainda encontra espaço nas entrelinhas para lavrar um humor subtil, amenizando ligeiramente a ferocidade do conflito. Homens selváticos compõem a maioria dos fotogramas, mas Emily “Face de Porcelana” Watson derrama uma alvura cândida, suavizando momentaneamente a contenda, para uma brutal explosão final que relembra as conclusões deliberadamente bárbaras de Peckinpah. Nick
gloom rocker Cave cinzela os ângulos temáticos com enfermidade, penúria e morte, explorando o abismo entre a civilização e a selvajaria. Cave calcorreia poeticamente o familiar trilho sombrio de um músico que compôs há uma década um álbum denominado “
Murder Ballads”. Aliás, o peculiar jardim da personagem de Watson evoca a sua música, “
Where the Wild Roses Grow”. Apreciadores da sua música (como eu) irão reconhecer facilmente as correntes de fatalismo e ambiguidade que flúem no curso da sua obra. “
The Proposition” não representa uma boa proposta de visionamento… representa uma indeclinável proposta de contemplamento.