Ficção Científica dos Sonhos
“Paprika” representa mais um fascinante tratado visual de Satoshi Kon sobre as conexões entre a Memória e a Identidade. Ambientado num futuro próximo, Kon apresenta-nos uma máquina de psicoterapia experimental que permite interferir nos sonhos e sanar problemas psíquicos, substituindo o relato oral pela intervenção directa do psicanalista. Quando a máquina é roubada por «terroristas de sonhos», uma perseguição frenética é despoletada, pois o que está em risco é a própria realidade. Num universo onde as regras se tornam voláteis, a linha que separa o real do onírico torna-se praticamente imperceptível. E é neste território recorrente que Satoshi Kon volta a desafiar a sua audiência. Ele é um batedor do subconsciente, das respectivas urgências e ânsias que regem por vezes o nosso quotidiano. Como animador, Kon compila os traços da vida real mais atentamente que muitos realizadores. Cada movimento, cada pedaço de lixo, cada agitação no vento, cada pestanejar é condensado sob elevada pressão, mas com uma fluidez perfeitamente adequada para deambular através de sonhos, tempo, fantasia e níveis da consciência. As permutas entre realidade e fantasia são fantasmagoricamente sublimes, reguladas pelas ilógicas peculiaridades que convertem abruptamente sonhos em pesadelos. Serão os sonhos fotografias do inconsciente que reflectem visões do que o espírito deseja? Existem inúmeras teorias sobre os maquinismos psicológicos e sobre as reacções sensoriais, mas a essência da nossa Humanidade permanece bem oculta no nosso âmago. É um território sagrado, o derradeiro refúgio que a ciência ainda não conseguiu enclausurar numa base de dados. Satoshi Kon desafia explorações na sua plateia, incita-a a testar novos conceitos, a esquadrinhar e reflectir sobre os territórios palpáveis e quiméricos que moldam a sua aura. Apesar do frenesim que se apodera da maioria dos momentos, “Paprika” não deixa de verter uma lágrima de nostalgia e remorso. Porque numa sociedade contemporânea que avança com descobertas tecnológicas que brotam como cogumelos, fica melancolicamente claro que se deixou algo enterrado para trás.