Class.: Ponto Morto“
Death Proof” é a segunda parte do projecto “
Grindhouse”, que apresentava “
Planet Terror” de Robert Rodriguez na primeira parte. O projecto pretendia reviver as sessões duplas onde vigoravam os
Exploitation-Movies de qualidade duvidosa, mas falhou redondamente no
box-office americano, pois apesar da fanfarra de possibilidades, o público não conseguiu assimilar o conceito proposto, gerando atitudes tão caricatas como o abandono da sala no final do primeiro segmento, ignorando que iriam ser projectados dois filmes em separado. Os produtores decidiram então separar os segmentos e o filme de Quentin Tarantino foi distribuído na Europa em formato alargado. A ideia para desenvolver “
Death Proof” surgiu quando Tarantino falava com um amigo sobre a aquisição de um carro. Ele desejava adquirir um Volvo, porque não queria morrer num acidente de carro, como aquele de “
Pulp Fiction”. Então, no que diz respeito a segurança, seu amigo contou-lhe que poderia colocar qualquer bólide nas mãos de uma equipa de duplos, que por um punhado de dólares o transformariam à prova de morte. A expressão “
Death Proof” fixou-se então em Tarantino.
Existe uma linha temática bem densa pela filmografia de Quentin Tarantino, mas “
Death Proof” torna-a demasiado delgada. Não se perde o fio à respectiva meada, mas a exposição da brilhante tapeçaria que Tarantino tem para oferecer à Sétima Arte, encontra-se aqui tingida com algumas nódoas. A abordagem não é má, mas a sua execução é intermitente, caindo por vezes num precipício de forma e conteúdo. É certo que “
Death Proof” é uma brincadeira com os filhos bastardos do submundo do Cinema, mas encontram-se referências em demasia ao que o próprio Tarantino já realizou, para não falar do seu
cameo desnecessariamente longo. Já todos percebemos que é podófilo. Com grandes planos de pés, lambidelas e referências a massagens dos ditos cujos, já todos assimilamos a sua tara por pés. Mas esfregar continuamente o Grande Ecrã com estas situações, chega a ser tão enjoativo como o cheiro de chulé. Marcam igualmente presença as suas marcas (
hamburgers Big Kahuna, por exemplo), melodias familiares em toques de telemóvel, a música "
Misirlou" visível num relance da
jukebox, o xerife e o filho nº 1, os
Acuna Boys, as
Vipers, texturas amarelas com riscas pretas e montes de diálogo mundano sobre praticamente tudo o que preenche a superfície terrestre. E é aqui que se começa a notar o fraquejar do melhor que o cineasta pode ofertar, mesmo inserido no tributo a um Cinema de fetichismo. Exceptuando breves exemplos, a maioria dos diálogos é de uma irrelevância
pop atroz. As conversas tornam-se insípidas e não sustentam a relevância da penada de “
Reservoir Dogs”, “
Pulp Fiction” ou “
Kill Bill”. Não existe um sentido de progressão apurado e as personagens femininas (descaradamente na primeira parte) são marionetas que abrem a boca para expelir frases de Tarantino. Meros chavões de moçoilas vãs, sem ponta de terreno fértil para desabrochar um palpável sentido de autenticidade.
Não existe durabilidade na profundidade que a exposição por vezes sustenta, todavia, quando se ultrapassam estes problemas de engrenagem, “
Death Proof” dispara numa velocidade de ponta. Se é certo que Tarantino não se supera a si próprio, também não deixa de ser verdade que consegue capturar parte da essência dos filmes que deseja emular. Na estética central, o autor consegue cobrir um considerável raio de homenagens, desde valores de produção, caracterizações e relances temáticos. É na construção potente e explosiva da personagem central, que Kurt Russell permite Tarantino explanar toda a sua magia. Com uma cicatriz que atravessa o seu olho esquerdo, o mesmo que se encontrava tapado em “
Escape from New York” de John Carpenter, Russell é absolutamente irrepreensível na sua interpretação. Com as suas Obras-Primas da década de 90, Tarantino colheu inspiração de filmes da década de 70 para apresentar vívidas, densas, apaixonantes e profundas observações. Contudo, existe uma forte diferença entre dar à audiência o que eles desejam e dar-lhes o que se deseja que eles desejem. Durante a maioria de “
Death Proof”, Tarantino limita-se a copiar as inspirações, numa reciclagem banal. Os fãs inveterados e os espectadores que desconhecem os filmes que o cineasta aproveita, irão aproveitar bem melhor a viagem. Quem estiver familiarizado com os mesmos (ou parte deles), irá sentir o resfriar do ardor das reflexões pluralistas a que Tarantino nos habituou com suas
homages. Mesmo assim, quando o homem entra em máxima rotação, segurem-se, pois o condutor Tarantino guia-nos pelas curvas e contracurvas de toda a sua destreza cinéfila. Quando deixa de parte as imitações corriqueiras, surgem referências com um elevado nível de perspicácia, como a cena do hospital, na qual o xerife se refere a Stuntman Mike como Frankenstein, aludindo ao filme “
Death Race 2000”, no qual David Carradine desempenha um piloto (Frankenstein) que participa em corridas com o intuito de atropelar peões e somar o maior número de pontos.
Quando desponta o seu apurado sentido
cool, o humor destorcido e a polpa do seu
gore, entramos no verdadeiro reino Tarantinesco. A coreografia da perseguição final é exímia na criação de um sentido de antecipação e expectativa. A estocada final da personagem desempenhada por Rosario Dawson (Abernathy) é um magnífico apogeu de farra. E a banda sonora, como em qualquer filme de Tarantino, é um autêntico evento. Existe um seguimento conceptual em músicas que dispensavam perfeitamente um acompanhamento visual, mas que sob o jugo de Tarantino se tornam autênticos ícones. Se é certo que me diverti bastante (principalmente na segunda metade) com a folia de Quentin Tarantino, o meu desejo é que termine o recreio e volte depressa ao trabalho, arregaçando as mangas de cinéfilo para desconstruir géneros com a paixão que nos habituou, pegando em materiais existentes e elevando-os acima de níveis racionais. O seu engenho reside na forma como se apodera de elementos vulgares de filmes de baú, subvertendo-os em gloriosas composições. Ele domina a Arte do entretenimento com entusiasmo nostálgico e violência arrojada que o seu ângulo artístico torna vibrantemente humorística. Mas será que algum dia, Quentin Tarantino irá utilizar todo o seu enorme talento na edificação de uma obra completamente original? Ou será que “apenas” deseja ficar imortalizado como o autor das melhores
homages de sempre?