Existe uma bela porção de perversidade na edificação deste filme vertiginoso. Esqueçam a nostalgia imprimida nas repugnantes versões cinematográficas de “
Charlie's Angels”, “
Starsky and Hutch” ou “
The Dukes of Hazzard”. Exceptuando o título, o par de detectives Sonny Crockett e Ricardo Tubbs e uma cover da música de Phil Collins (“
In the Air Tonight ”) que apenas desponta nos créditos finais, “
Miami Vice” evoca muito pouco da série televisiva que fez furor na década de 80 e que teve Mann como produtor executivo. Grande fatia da acção decorre fora de Miami; os trajes claros, as águas cristalinas, as areias brancas e o néon festivo foram substituídos por matizes sombrias, granulosas e inóspitas. Eliminando as vibrações metrosexuais do espectáculo televisivo, Mann escavou fundo numa melancolia machista, aprofundando tormentos reprimidos de homens do dever.
Substituindo Don Johnson e Philip Michael Thomas estão Colin Farrell e Jamie Foxx como detectives Sonny Crockett e Ricardo Tubbs. Crockett e Tubbs infiltram-se no transporte de grandes carregamentos de droga no sul da Flórida na tentativa de identificação do grupo responsável pelas mortes de seus colegas de trabalho. Sejam polícias, ladrões, taxistas, produtores televisivos ou assassinos contratados, os homens que pululam uma fita de Mann conectam com o exacto fio de fatalismo: incapacidade para abstraírem o que são daquilo que fazem. O cineasta pinta devoções irracionais, revelando interesse na alienação de homens que operam na sombra da sociedade com elevado grau de competência e profissionalismo, apesar dos conflitos introspectivos e da mortificação do coração.
Mann é um daqueles raros cineastas com um apurado toque de Midas para com os seus actores. José Yero (John Ortiz) e Jesús Montoya (Luís Tosar) poderão sofrer com alguma falta de personalidade, mas o foco do filme é a solidão, a impotência e a alienação provocada pelo dever em dois homens (particularmente Sonny), nesta parábola moderna à história de Sodoma e Gomorra. Jamie Foxx erradia uma profusa porção de impotência que abate a sua personagem, mas é Colin Farrell quem explode em ondas carisma, acolhendo autoritariamente o foco do filme. Deambulando entre a área nublada que divide a sua identidade real da fabricada, Farrell desvenda de forma fascinante as valas da sua alma. Relativamente à actriz com quem contracena, deixo uma questão no ar: serei o único que considera que Gong Li comunica facialmente um ardor místico de uma actriz da era-muda? Li desempenha com um brio extraordinário, uma personagem que se funde maravilhosamente com Crockett, camuflando o seu real âmago numa vida que conspurca a sua essência. Nos universos machistas de Michael Mann o sexo indicia perigo e dor. As cenas íntimas entre ambos bailam a beleza quimérica e libertadora do seu amor com a melancolia de um Éden efémero.
A pedido de Mann, a câmara sensual de Dion Beebe continua experimentando a tecnologia digital, fotografando maravilhosamente a luz incidindo no mar tropical, relampejando nos céus e captando a noite num visual granulado que apesar de todo o realismo não atinge o requinte electrificante alcançado em “
Collateral”, onde Los Angeles expelia uma vida mística que interagia com os protagonistas, de forma praticamente palpável. Apesar de não atingir a gravidade da opulenta majestade patente na Obra-Prima “
Heat”, “
Miami Vice” desliza majestosamente nas cenas de movimento visceral. Mann encontra sempre maneiras menos convencionais de filmar cenas convencionais, assente num instinto e estilos refinados para compor enquadramentos que deslumbram a visão e convocam a reflexão. Num febril espectáculo operático, consegue fundir música, cor e drama num filme com sequências de qualidade extática, frisando Cinema
avant-garde no cerne de uma grande produção. Numa filmografia vincada numa obsessão pela actividade criminal e pelos arrevesados meandros da lei, Mann continua a estimular o público nestes trilhos familiares, mas a força mais perigosa e poderosa já não se esconde atrás da próxima esquina, ficando alojada em lampejos de amor impossível.
A conclusão do filme é silenciosamente brutal, como se nos separassem abruptamente de uma fracção da nossa vida. Revelando consistência temática, a sobriedade do filme galopa numa violência emocional. As cenas são longas, meticulosamente arquitectadas e elegantemente detalhadas sem desperdício de fotogramas. Numa atmosfera de violência inevitável, o único laço possível entre dois homens definidos pelo seu trabalho é uma solitária fidelidade profissional. “
Miami Vice” representa outro poema fatalista de Mann, o
Poeta da Urbe Nocturna.