Para os apreciadores de bom terror, George A. Romero encontra-se num altar e é venerado como um deus. O notável realizador iniciou a saga “Dead” em 1968 com “Night of the Living Dead”. Apesar do baixo orçamento a película foi uma perfeita fusão de horror grotesco, humor negro e comentário social, jamais igualada.
Depois sucederam “Dawn of the Dead” (1978) e “Day of the Dead” (1985). Ou seja… Seguindo a lógica, o quarto filme deveria chamar-se… “Evening of The Dead”, ou em português “Lusco-Fusco dos Mortos”, não? Enfim…
Agora a sério, após vinte (longos) anos, Romero recebeu um orçamento respeitável para materializar a sua visão e acrescentar um novo capítulo à saga “Dead”, intitulado “Land of the Dead”.
Nesta quarta investida de Romero na saga, os zombies tomaram conta da Terra. À medida que a praga de zombies prolifera pelo planeta, uma pequena comunidade de sobreviventes tomou residência numa cidade fortificada: Fiddler’s Green. O complexo liderado pelo impiedoso industrial Kaufman (Dennis Hopper), destina-se a manter a classe rica feliz e segura, os pobres distraídos e os zombies bom longe. Para o mercenário Riley (Simon Baker) e seu grupo (Robert Joy, John Leguizamo e Asia Argento, entre outros), a ameaça começa a ganhar contornos alarmantes e a segurança de Fiddler’s Green fica comprometida, pois os zombies (liderados por Eugene Clark) aprenderam a usar a lógica e utensílios para se banquetearem em carne humana.
“Land of the Dead” retorna o género zombie às suas divertidas raízes através do seu criador, após algumas ramificações sérias (“28 Days Later”), brilhantes (“Shaun of the Dead”), óptimas (o remake de “Dawn of the Dead” em 2004) e outras patéticas (os filmes “Resident Evil”). O filme marca igualmente o regresso de elementos do género que foram ignorados. Um claro exemplo é não existirem zombies com aptidão para competirem com Flash Gordon. A lentidão devolve o efeito de terror escalado.
Tal como as películas anteriores da saga tinham algo a proferir sobre a Humanidade, “Land of the Dead” oferece uma nova perspectiva política de Romero. Para além das óbvias (e saturantes) referências ao 11 de Setembro, o cineasta escava ainda mais fundo e apesar de preferir um filme com significado, Romero não olvida o seu sentido de entretenimento. É um mestre em histórias com múltiplas camadas e desafia a reflexão do espectador.
Se “Dawn of the Dead” satirizava o consumismo abrupto, “Land of the Dead” lança um olhar crítico aos capitalistas que tornam o consumismo possível. Romero reprova igualmente a atitude das nações milionárias, para com os países do Terceiro Mundo. O que realmente assusta no filme é verificar como as altas classes da sociedade privilegiam o seu estatuto em detrimento das vidas ameaçadas dos desditosos, mesmo perante crises desmedidas. Os residentes de Fiddler's Green vivem relaxados em luxúria, aprazivelmente sorvendo cocktails, comprando em lojas de estilistas, ignorando completamente o conflito, a destruição e miséria que é semeada à sua volta. Como poderão viver pacatos e tranquilos? Como terão paz de espírito para dormir? Será que a calamidade pesa tanto na sua consciência, como um pedaço de algodão nas costas de um elefante? Os paralelismos com o mundo actual são irrefutáveis.
Apesar de Romero imbuir os seus filmes com uma crítica à sociedade de costumes americana (e porque não mundial?), o subtexto sócio-político não impede um visceral festim gore.
Apesar dos efeitos gore de Tom Savini para “Dawn of the Dawn” e “Day of the Dead” serem idolatrados na comunidade de fãs gore, o trabalho de Greg Nicotero e Howard Berger (“Evil Dead 2”, “Pulp Fiction” e até “Kill Bill: Vol. 1 e 2”) é fantástico, meticuloso e melhor forjado. No entanto os fiéis a Savini irão saciar a nostalgia, vendo-o num papel de zombie. O realizador e o argumentista do brilhante “Shaun of the Dead” (Edgar Wright e Simon Pegg, respectivamente), também participam neste filme como zombies. O filme de 2004 foi uma ilustre homenagem aos filmes de Romero.
A sátira social é excelente (o pormenor do fogo de artifício para distrair é magnífico) e a acção gore deliciosa, mas a história do filme é simples, básica e previsível, revelando uma das deficiências do filme. A cidade fortificada evoca “Escape from New York” de John Carpenter, revelando algo que Romero nunca exibiu na saga: alguma falta de originalidade. Será que o facto de uma grande produtora tomar conta deste episódio da saga, limitou um pouco a acção de Romero? O que é certo é que os zombies não metem assim tanto medo, nem existem assim tantos momentos para cravarmos as unhas nos braços da cadeira. Se nem as personagens do filme receiam os monstrinhos esfomeados, porque deveríamos nós teme-los? No entanto o recado de Romero é evidente: ao tornar os mortos-vivos “simpáticos” ele salienta que estes filmes pertencem aos próprios zombies.
George A. Romero criou uma interessante versão zombie para “Metropolis” de Fritz Lang. A metáfora social é acutilante, a lenta educação dos zombies é um desenvolvimento interessante, a engenhosa manipulação da câmara origina algumas cenas assombrosas, os efeitos gore e a caracterização são soberbos (com especial menção para o fenomenal palhaço zombie), mas a história é presumível. “Land of the Dead” poderá não ser o mais assustador filme de zombies de sempre, mas é certamente o mais perspicaz. Apesar de Romero ter esventrado a sociedade de costumes, para nos regalar com um nutritivo rodízio, não fiquei totalmente saciado e espero que ele esteja apenas a aquecer para um suculento banquete final.