sábado, setembro 08, 2007

"Mysterious Skin", de Gregg Araki

Class.:



Anjos quedados

Mysterious Skin” é a história de dois rapazes unidos implacavelmente por um acontecimento do passado. Brian (Brady Corbet) vive com um hiato na memória que lhe impede a recordação da causa que lesou sua alma. Neil (Joseph Gordon-Levitt) por seu lado, recorda cada ângulo da ocorrência que tomou controlo indelével sobre a sua vida. Se o tema da Pedofilia serve de base para as chalaças de um número considerável de comediantes, para Gregg Araki serve de ponto de partida para uma avaliação sóbria da sua verdadeira natureza e das suas consequências crónicas. Manipulando uma matéria delicada e obscura, Araki constrói um filme perturbador, mas tremendamente lúcido e pleno de toques subversivos sobre os ritmos narrativos do género. A obra não resulta de forma tão sumariada e manipulativa como uma exploração dos horrores do abuso de crianças. A sua meditação visa discorrer sobre algo mais amplo. Sobre a premência de ultrapassar obstáculos que nos impedem a formação enquanto seres viventes, pensantes e sensitivos. Pleno de compostura na realização, Araki humaniza as vítimas em vez do malfeitor, injectando-lhes nuances de complexidade que minam subtilmente a estampagem de histeria que filmes sobre a Pedofilia exibem. Seus interesses prendem-se com os laços emocionais, com a subjectividade da experiência dos molestados, com as oposições e simetrias que o trauma transmite e regista na memória. E para o alcance de um resultado tão notável, Araki contou com actuações inspiradas na dupla principal do seu elenco. Corbet tem um desempenho delicadamente equilibrado num estado titubeante, onde o alvorecer de cada dia fortalece uma noção de antecipação. Todavia, a interpretação avassaladora do filme pertence a Gordon-Levitt, um talento que além de revelar maturidade na triagem dos papéis que acolhe, emana uma energia intelectual tão espontânea quanto a sua paixão. As mutações que imprime em Neil, de adolescente altivo a vítima de assustadora vulnerabilidade são vertiginosamente reais. Em determinadas alturas, o seu olhar cerra-se em cortinas que cobrem praticamente todos os resquícios de um ser humano. Mas aos poucos e poucos, ele descobre-se mais e mais.



Personagens homossexuais são maioritariamente utilizadas em comédias burlescas, enquanto a temática da homossexualidade surge apenas trabalhada por autores concebidos em estúdios independentes. Contudo, aqui não existe o escape de uma história de Amor, nem o cinismo de uma propaganda conceptual. “Mysterious Skin” pulsa com uma autenticidade amarga, dolorosa e profunda. Cena após cena, o filme atinge uma profundidade que volta as costas à convenção, manifestando um coração no seu âmago que nos livra de mais um exercício de choque gratuito. “Mysterious Skin” adquire uma tonalidade etérea através da sua imagética, mas a respectiva textura luxuriosa que praticamente solicita o nosso toque humano, assenta o filme no solo firme da realidade. Mesmo quando sentimos um poder sobrenatural clamar pela ascensão dos espíritos torturados, os grilhões que os encarceraram nesta terra devassa puxam-lhes sempre para uma realidade de padecimento. O termo Abuso simplifica em demasia o que sucedeu com estes meninos e Araki explora a matéria com doses certeiras de corajosa honestidade e ambivalência. A trajectória do arco de sofrimento dos dois rapazes converge para um encontro onde as feridas terão de ser abertas, para a câmara poder ascender daquele tumulto emocional e desaparecer na noite do seu futuro. Nesta atmosfera não pairam condenações nem absolvições. Tudo se condensa em torno das revelações que poderão impulsionar a regeneração do tecido espiritual destas almas malogradas, cujas asas de pureza foram ceifadas.

6 Comments:

Blogger Flávio said...

«Araki humaniza as vítimas em vez do malfeitor, injectando-lhes nuances de complexidade que minam subtilmente a estampagem de histeria que filmes sobre a Pedofilia exibem.»

Assino por baixo. Adorei o filme. É um filme sobre vítimas e não sobre pedófilos e essa é a sua grande força, porque não cai nos moralismos e preconceitos do costume.

12:02 da tarde  
Blogger Francisco Mendes said...

É uma meditação sem falsas demagogias, sobre juventudes indiferentes e distantes de afecto. Uma obra magnífica que subverte o género, enquanto povoada por personagens que subvertem sombras do passado, em busca de um conforto há muito subtraído.

1:11 da tarde  
Blogger Loot said...

Não posso deixar este filme sair das salas sem o ver, esta semana tenho de o conseguir ver.

Abraço

8:56 da tarde  
Blogger Francisco Mendes said...

Imperdível.

Abraço!

10:15 da manhã  
Blogger Loot said...

Finalmente já vi o filme e adorei, se bem me lembro-me na altura do Brick, aconselhaste-me ver este filme, nunca na altura pensei que ia ter a oportunidade de o ver no cinema uma vez que era de 2004.

Abraço

6:31 da tarde  
Blogger Francisco Mendes said...

Ainda te recordas? :)

Abraço!

9:14 da manhã  

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