sábado, julho 14, 2007

O jogo da Morte


Fotograma de “Drowning by Numbers


Sem vacilar por um instante, assumo peremptoriamente que o autor britânico que mais me fascina é Peter Greenaway. As vibrações do seu Cinema vogam do plano físico para o metafísico, do formal para o conceptual. Imaginem uma dissertação apaixonante sobre a história da Arte ocidental, aprofundada com agentes evolutivos da Arte contemporânea. Greenaway é tudo isso e muito, muito mais. Pela sua obra reluz a presença de elementos da Arte Barroca, numa composição de cenas e planos que se assemelham a pinturas. O seu interesse por Ópera (escreveu dez libretos) mesclado com os parâmetros estéticos da pintura exponenciam a experiência audiovisual, emanando um poder sensualmente diabólico e tão complexo que requisita várias deambulações para a absorção da sua opulenta densidade. "The Cook, the Thief, His Wife, and Her Lover" representa um dos meus Filmes de Altar, mas aquele sobre o qual se debruçam estas breves linhas de texto é “Drowning by Numbers”. Reflectindo inevitavelmente o artístico, bizarro e surreal palato cinematográfico de Peter Greenaway, o filme é sobre três mulheres de gerações diferentes que, para além de partilharem o mesmo nome (Cissie Colpitts), têm também um objectivo comum: afogar seus maridos. Fotografado maravilhosamente por Sacha Vierny, que já havia colaborado com Alain Resnais e Luís Buñuel, o filme recebe ainda a composição musical do brilhante Michael Nyman, que através de mecanismos de repetições subtis lapida a progressão simétrica da película. “Drowning by Numbers” é uma comédia negra revestida com ironia, que realça a obsessão humana por jogos. Durante o seu início esotérico, a possível sensação de inutilidade desvanece quando nos apercebemos da sua consonância no todo, porque nos encontramos na presença de um filme de Greenaway e porque este representa o primeiro de muitos jogos intelectuais, numa fascinante miríade de alusões e referências.

A partir desse momento, números de 1 a 100 despontam pelo filme, sejam formatados visualmente ou através de diálogo. A enumeração é uma das mais simples e primitivas formas de narrativa. Além do correspondente sentido de progressão, este mecanismo enfatiza a temática de jogo, convocando o divertimento da audiência na resolução desta charada. Esquadrinhando uma cornucópia de matérias, o filme resulta como uma verdadeira fábula para adultos revestida sob uma dissimulada camada de inocência. Belo e igualmente grotesco, o filme desnorteia e seduz com uma complexidade pictórica que enleva toda a sua carga poética e metafórica sobre jogos sexuais e jogos de morte. Repleto de perspectivas nada convencionais, todas as suas obsessões e frustrações interligam-se com memoráveis imagens que aprofundam a atmosfera de decadência moral, subvertendo a imagem tradicional de Inglaterra, retratando-a com vulnerabilidade e oculta em sombrias aparências de território estival. Estimulando a mente com uma teia de significados, objectos e símbolos, mergulhamos no oceano de possibilidades que o imaginário da água providencia nos filmes de Greenaway. Aqui, este elemento específico funciona como instrumento de morte, se bem que o cineasta também se apreste a mencionar a ambivalência da relação Água-Morte, aludindo à percepção comum da dependência da Vida na Água, na colocação de Torres de Água no segundo plano de certas cenas. Greenaway estabelece regras e depois deixa-nos brincar com seus jogos cinemáticos. Padrões desconcertantes começam gradualmente a revelar conexões, mas quando julgamos que o enigma se encontra resolvido, surge sempre uma nova mutação na tela, levando-nos a reconsiderar a verdadeira noção de analogia. No fundo, Peter Greenaway incita cogitações sobre a suspensão do Homem hodierno entre densidade e rarefacção, simplicidade e redundância, capacidade moral e equilíbrio intelectual, sensorial e conceptual. Pela sua obra perpassa a pujança dramática do jogo de luz e sombra que enobreceu o cinema narrativo dos anos 30 e 40. Utilizando o aspecto sensorial que o espectador absorve, Greenaway brinca deliciosamente com nossos valores e emoções, pintando a angústia da finitude.

3 Comments:

Blogger Maria del Sol said...

Pela descrição aqui deixada, a obra de Greenway constitui provavelmente um verdadeiro deleite para os apaixonados por História da Arte, obrigada pela sugestão :)

11:59 da manhã  
Blogger Cataclismo Cerebral said...

Gosto de Greenaway, mas confesso que nunca pus a vista neste filme. A premissa é altamente original e enigmática. Tenho de vê-lo, sem falta!

Abraço

6:09 da tarde  
Blogger Francisco Mendes said...

Maria: Trata-se de um autor que nos presenteia com obras estimulantes.

Cataclismo: Marca na lista "A Ver" :)

Abraço!

11:37 da manhã  

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