segunda-feira, maio 08, 2006

"The New World", de Terrence Malick

Class.:

A Casa, segundo o Poeta Idílico
Extraordinário!
Fisicamente, desloco-me 20km para visionar este filme, mas assente na sala de Cinema sou arrebatado para outro mundo, bem mais distante. Quando os créditos finais assomam a tela, ainda se apalpa o pulsar de uma jornada que esvaece lentamente a sua aura transcendental. Quando a escuridão é completamente dissipada e a tela readquire a sua tonalidade ebúrnea, a minha mente ainda se encontra em estado de êxtase, recusando terminantemente ordenar movimento às pernas. ”The New World” representa tudo o que procuro na Arte em geral e no Cinema em Particular: abstracção do pó mundano que nos asfixia o quotidiano. Muito obrigado Sr. Malick, por me colocar em contacto espiritual com os ritmos da terra, apesar de permanecer fisicamente sentado numa sala de Cinema. Muito obrigado pelo arrebatamento ministrado nesta excursão ao reino de um Novo Mundo.

Colocando a Disney de lado, nenhum realizador ambicionou expor com seriedade este momento capital da história americana, quando em pleno século XVII, a expedição de colonizadores britânicos sob o comando do Capitão Newport, aturdiu os nativos americanos e a beleza bucólica do seu lar. A originalidade de “The New World” assenta na sua exposição temática, lidando com a colisão entre realidade e ilusão, facto e utopia. Olhares tácitos, toques proibidos e os murmúrios da Mãe-Natureza repercutidos em cada frame de “The New World”, espelham a urgência pungente, anunciando os temas de descoberta e perda através da simbiose perfeita entre sonoridade térrea e imaginário ambiental. Nada disto foi algum dia alcançado cinematograficamente com tamanha destreza. O efeito inovador invoca o espectador numa deambulação bucólica que serve de prelúdio: contemplamos a pureza cristalina de um rio correndo livre na serenidade florestal, enquanto deleitamos a nossa audição numa colectânea divina de sons. Subitamente, apercebemo-nos da formação de nuvens, gotas de chuva começam a aspergir subtilmente tudo em nosso redor, causando uma ligeira flutuação na água. À medida que escutamos o maravilhoso trecho de "Das Rheingold” de Wagner, escrito para evocar o serpentear de um rio e a emanação de vida, ficamos diante de um dos mais poderosos prólogos dos últimos anos.



Q'Orianka Kilcher e Colin Farrell representam a visão romântica de dois amantes apanhados no centro de uma colisão de culturas Darwiana. Kilcher é uma nobre selvagem na arte da representação. Não possui uma beleza convencional que lhe garanta um papel numa ordinária comédia juvenil, mas encarregue de suportar o fardo de um drama histórico, a miúda (de 15 anos na altura) consegue fluir um rio de emoções pela sua personagem, constituindo uma das maiores surpresas interpretativas dos últimos tempos. Farrell demonstra competência na ocupação da sua tarefa, particularmente na narração quimérica, sussurrando para si próprio pensamentos íntimos e ânsias ocultas. A composição musical de James Horner é estóica (incutindo ainda um pouco de "Piano Concerto Nº23" de Mozart) e Emmanuel Lubezki vitaliza o romance com uma energia mística. A sua virtuosa fotografia evidencia a natureza como algo que não está apenas ao alcance do nosso toque, mas como uma benesse que interage connosco. Evitando a luz artificial em detrimento da luminosidade natural, o cenário ganha textura genuína e o facto de algumas cenas serem captadas em 65mm, injecta vida numa película que enleva os sentidos. Mesmo quando Malick transporta o filme para Inglaterra, a sua tremenda sensibilidade mantém-se intacta ao evidenciar a simetria formal dos seus jardins, num mundo geométrico inverso à beleza indomável da floresta.

Realizando apenas 4 filmes em 32 anos, Terrence Malick é um espécimen em vias de extinção e não faltam caçadores com a intenção de o aniquilar. Os seus avistamentos são raros, recusa ser entrevistado ou fotografado, recusou comparecer na cerimónia dos Oscares apesar das suas nomeações por “The Thin Red Line”, mas quando se compromete a dirigir um novo projecto, desperta a atenção dos gurus e das estrelas do meio. Mesmo os críticos que o abominam fazem fila para visionar uma nova obra sua, confirmando que um filme de Malick é um evento. 1973 foi o ano do intemporal “Badlands”, uma película atmosférica que evoca o fatalismo de uma odisseia de violência. Em 1978, “Days of Heaven” volta a seguir a tradição narrativa de casais delinquentes com um complexo triângulo amoroso imerso num assombroso ensaio pictural, um pouco como “The New World”. Ao escrever, produzir e realizar dois únicos filmes na década de 70, Malick tornou-se uma lenda ao desaparecer no apogeu da sua carreira, durante 20 anos. Voltou em 1998 com “The Thin Red Line”, renovando o estudo das anomalias da condição humana, numa visão singular da 2ª Guerra Mundial, como afronta à Mãe-Natureza.

Na maioria dos filmes, basta uma breve sinopse ou uma referência a uma obra idêntica para aflorar a experiência que nos aguarda, mas “The New World” não é um filme qualquer… é um meio de transporte. A vibrante poesia visual irá certamente defraudar quem encara o Cinema como uma mera construção de personagens, confundindo claramente Literatura com Cinema. Esta sinfonia é orquestrada em torno de meditações supra-pessoais acerca do Amor, da curiosidade, da inocência, da descoberta e da perda, onde os quatro elementos primordiais (Terra, Água, Ar e Fogo) se encontram imbuídos numa portentosa carga simbólica. Requintadas pinceladas cinematográficas são derramadas em celulóide, com a precisa mestria empregue por um pintor numa tela intemporal. Malick nunca gerou consenso crítico e “The New World” cria um golfo ainda mais proeminente nesta desconexão, mesmo para quem julgava entendê-lo lá porque venerava o anterior “The Thin Red Line”. Como filho do sonho hippie americano da década de 60, de uma fantasia que circula na veia americana desde os nativos ao poeta Walt Whitman, Malick decompõe em “The New World” o ideal utópico de um lar nas colinas e da reinvenção pessoal no misticismo da fauna e da flora.



Terrence Malick é um Poeta Idílico. É um transcendentalista insanável, proprietário de uma patologia pela qual inúmeros cineastas amariam padecer. É um autor que se demarca dos produtos reciclados de realizadores sobrevalorizados que almejam unicamente atordoar o box-office. O seu objectivo é desafiar a audiência em experiências transcendentais que ultra-dimensionam a mera superficialidade fílmica. Malick denota preocupação com temas que visam a transição terrena do homem, a corrupção da inocência, a expulsão do Paraíso e a violência destrutiva que contamina o ser humano. O seu idioma cinematográfico é fluente, desafiando a gravidade ao flutuar acima do trilho narrativo que a maioria dos cineastas adora repisar de forma cíclica. Malick é um dos superiores Poetas da Sétima Arte que graças ao seu ritmo sensitivo e ao vívido sentido de espaço, seria bem mais prolífico na era muda do que na conjuntura prosaica hodierna. Por vezes, até parece que foi um acidente que tornou o Cinema uma forma narrativa que usurpa a exploração visual e poética do meio. A fatia de artistas cujos filmes deveriam ser expostos numa galeria de Arte é delgada, mas são as suas composições que reproduzem o genuíno pulsar da Arte Cinematográfica. Essa bela estirpe, imersa numa bruma incandescente de contemplação, inclui nomes como Yasujiro Ozu, Andrey Tarkovsky, Bela Tarr, Ingmar Bergman, Michelangelo Antonioni, Federico Fellini, Jean-Luc Godard, John Ford, Stanley Kubrick, ou os contemporâneos Wong Kar-wai, Abbas Kiarostami, Hou Hsiao-hsien, Tsai Ming-liang e Gus Van Sant, entre outros. Através da sua espontaneidade de descoberta visual e da sua metodologia elíptica, Terrence Malick incorpora esta classe superior ao forjar momentos de assombramento emocional.
Malick atinge o coração nas exactas proporções em que acerca o olho e a mente. “The New World” representa o Cinema no seu estado mais puro, liberto das correntes que sufocam os princípios da narrativa cinematográfica. O filme desperta como uma mística alvorada e queixumes sobre o ritmo lento ou sobre a ausência do background das personagens, é o mesmo que considerar um Pôr-do-Sol aborrecido ou anti-climático. Todas as excelsas manifestações de Arte representam um festim para os sentidos. Ou nos deixamos guiar pela fonte da nossa essência, ou então ficamos à deriva numa localização inóspita que abominamos. Este não é um filme para leituras versadas, nem almeja uma elite intelectualizada. Esta Obra-Prima não requer gnose… requer sensibilidade. “The New World” não demanda ser percebido… necessita de ser sentido. Perto do fim, Pocahontas pergunta a John Rolfe (Christian Bale): «Não podemos ir para Casa?». Malick atinge o zénite lavrando a essência dessa Casa num detalhe imaculado. O filme termina, a mente ecoa «Vamos para casa» chamando-me para a realidade e apenas consigo formular uma questão no pensamento: Para quê voltar para casa, quando acabei de bater às portas do Paraíso?

16 Comments:

Blogger Francisco Mendes said...

Aceito a tua consideração (como sempre), mas pessoalmente experimentei o poder de uma Obra-Prima absoluta.
Cumprimentos.

10:40 da manhã  
Blogger Zorn John said...

Estou demasiado ansioso pra ver este filme. É que o último deste senhor "deu cabo de mim"! E já lá vão uns aninhos. Mas é ter estas emoções. Assim que puder vou ver. Até porque ainda fiquei mais curioso depois de ler o teu post.

Cumprimentos.

11:41 da manhã  
Blogger Francisco Mendes said...

"The Thin Red Line" é claramente o melhor filme de 1998, mas não consigo eleger o melhor de Malick. "Badlands", "Days of Heaven" e "The New World" são igualmente arrebatadores.

Obrigado pela visita.

Cumprimentos.

12:43 da tarde  
Blogger Francisco Mendes said...

O que me choca é a constatação da insensibilidade humana. Somos uma raça fatalmente mecanizada.

É pena... mas felizmente ainda sobrevivem uns quantos HUMANOS, que o mundo procura engaiolar porque uma simples contemplação do firmamento representa um momento «chato», «perdido» e «enfadonho». Para o clima robotizado que asfixia o território terrestre, um Por-do-Sol necessita de acção, background e quem sabe... legendas...

1:31 da tarde  
Blogger Francisco Mendes said...

Enfim...

9:24 da tarde  
Blogger MPB said...

Francisco, não te vou dar os parabéns pelo excelente texto, mas fica a promessa que quando passar por ti na rua terás direito a vénia.

OBRA-PRIMA ABSOLUTA E SUPRELATIVA

Cumps

5:07 da manhã  
Blogger RPM said...

bom dia Francisco e obrigado pela tua visita, antes de tudo.

li o teu texto, ontem, mas o meu trabalho à noite não me permitiu responder e, agora antes de começar a fazê-lo estava a pensar no teu MI-3 e no papel que Tom Cruise faz em comparação com o do filme de Kubrick. Aqui, mais trabalho de actor....

e porque digo isto!!! porque este 'the new world' é, também, um filme que usa muito os efeitos especiais e, eu, cada vez mais, sou um adepto do trabalho do actor. Não quero com isto dizer que aqueles devam desaparecer...mas nunca fazer do actor um 'adereço' humano...

vou ver o pocahontas, em carne e osso (lolooll), quando aqui chegar....

abraço forte

RPM

9:08 da manhã  
Blogger Pedro_Ginja said...

Reconheço que o filme me assombrou no bom sentido...

Tem tudo para ser perfeito...Só o não é porque os produtores não o deixaram.
Concerteza já soubeste da versão inicial de 4h, que teve de ser cortada por motivos comerciais.
E esses cortes tiveram as suas repercussões, no filme e na sua estrutura.

Gostei muito do filme mas sinto que faltou algo. Faltou muito mais Malick. Mais paz, contemplação e mais cinema...
Eu ainda espero por um director´s cut de Malick, mas este realmente agradou-me muito. Não é o melhor do ano mas anda lá perto...

Abraço

10:24 da manhã  
Blogger Francisco Mendes said...

NeTo: Obrigado!
Cumprimentos!

Rui: Para mim o Cinema é muito mais do que uma simples construção e deconstrução de personagens. Para isso contemplo uma bela obra literária.

Não tenciono experimentar uma obra cinematográfica para apreciar o bom/mau trabalho de determinado actor, ou julgar a boa/má construção de uma personagem. Visiono Cinema com o intuito de o sorver como Arte, ou seja, abstracção sobrenatural do quotidiano físico.

Esse era justamente o intuito de Méliès, quando injectou no Cinema a sua base fantasista. E Malick suga como ninguém o espectador para um novo mundo. Quando digo espectador, pretendo dizer ser HUMANO.

Abraço!

Pedro: A edição em DVD irá satisfazer esse teu desejo.
Abraço!

10:36 da manhã  
Blogger RPM said...

Francisco e não querendo abusar do teu espaço para estas discussões com relevãncia, mas aqui vai a continuação.

Não quero comparar géneros, nem estilos, nem correntes filosóficas, nem origem das obras...

Amanhã, por exemplo, vou ver o Breakfast on Pluto e, à partida, sei que o trabalho 'real' do realizador e dos actores é constante como, por exemplo, o Capone, onde o trabalho do actor é importante, senão determinante....

Se fôr ver o MI3 e o Super-Homem, o 007, o Senhor dos Aneis eu já vou, com defeito, a pensar que o(s) filme(s) têm uma compoenete de Twilights muito grande e o cinema passa a ser entertenimento, puro entertenimento.....

Claro, não descurarei o lado individual do filme, a capacidade de realização do autor, os actores....mas é um trabalho que se torna grande com engenho dos criadores.....

Esta nossa 'discussão' de ideias é igualzinha á que tenho com o meu irmão...apesar dele gostar muito do cinema como Entertenimento. e atira-me à cara o slogan inicial de Hollywood, Pure Entertainement(!)

Abraço e desculpa este Ponto de Vista alargado

RPM

7:04 da tarde  
Blogger Francisco Mendes said...

Qual desculpa, qual quê? ;)
É sempre interessante existir uma salutar divergência na troca de opiniões. Temos sensibilidades contrastantes na contemplação da Sétima Arte, contudo existem pontos convergentes.

Abraço amistoso!

7:30 da tarde  
Blogger Francisco Mendes said...

Obrigado... acho eu...

Abraço!

4:04 da tarde  
Blogger BL said...

Excelente comentário e o melhor que já li em "praça pública". Uma verdadeira lufada de ar fresco se me permite. Cumps, Bruno Lomba - www.loveu2.blogspot.com

9:36 da tarde  
Blogger Francisco Mendes said...

Muito obrigado pelas palavras e pela visita.
Cumprimentos.

9:05 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Foi um dos filmes que me custou um pouco a ver. Representa a história da Pocahontas, mas centra-se muito nas duas personagens, e pouco no contacto enmtre índios e colonos. O que mais me custou foi a falta de dinâmica, mas as paisagens eram muito bonitas-

11:20 da manhã  
Blogger Francisco Mendes said...

O dinamismo encontra-se na justaposição de sentimentos que a experiência proporciona ao longo de um apelo à meditação. Malick é um dos meus inefáveis poetas cinematográficos.

1:13 da tarde  

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