sábado, setembro 24, 2005

“Psycho”, de Alfred Hitchcock

Class.:

“My mother... uh... what is the phrase? She isn’t quite herself today.” (Norman Bates)
Dissecar “Psycho” sem desvendar um pouco a sua história é extremamente complicado, mas serei o mais comedido possível, apesar do comum espectador estar familiarizado com a película.
O desígnio primordial de Alfred Hitchcock era criar um filme para audiências, mas “Psycho” foi muito além desse objectivo, pois inspirou (e continua a inspirar) realizadores, escritores, compositores, actores, directores de fotografia, editores, numa lista infindável de responsáveis pela Sétima Arte. Tudo resulta no filme, numa perfeita simbiose de esforços. O repertório de Hitchcock engloba obras geniais (“Rear Window”, “Vertigo”, “Rope”, “Notorious”, “Suspicion”, “Rebecca”, “Sabotage”), mas “Psycho” é a minha predilecta. O filme nada perde após múltiplos visionamentos, o que por si só representa uma extraordinária proeza para uma peça experimental. Foi estudado, dissecado e o seu legado é indelével.
“Psycho” segue inicialmente a secretária Marion Crane (Janet Leigh), que se apodera de uma considerável quantia monetária, cujo patrão lhe confiou para depositar no banco. Ela inicia uma fuga paranóica e aqui a firme mão de Hitchcock apodera-se do volante: os inquietantes óculos escuros do polícia representam ameaça, a chuva torrencial simboliza o quão incerto e toldado é o seu futuro. Subitamente ela aporta no Motel Bates, e encontra-se perante o gerente Norman Bates (Anthony Perkins), que a desarma com um sorriso afável e sanduíches. A partir daqui, descubram e contemplem individualmente esta Obra-Prima.
Na altura do seu lançamento, o filme foi considerado lixo pela crítica. Com “Psycho”, Hitchcock quebrou taboos cinematográficos, afrontando a censura. A intensidade do seu alcance contundiu a psique de audiências inteiras, irrompendo numa vaga de fobias por duches e estadias em móteis.

Anthony Perkins ofertou uma memorável interpretação à Sétima Arte. Ele não representou apenas um papel, mas desafiou e definiu uma personagem cinematográfica. A sua voz melíflua, o seu olhar penetrante e os seus maneirismos são fascinantes e arrebatadoramente sublimes.
A composição musical estridente de Bernard Herrmann, foi plagiada por inúmeros filmes para realçar a aparição de um psicopata. Os acordes enviam um gélido arrepio pela espinha acima e nenhum outro filme de terror foi alvo de uma composição tão esmerada, exceptuando “Halloween” de John Carpenter.
A própria fotografia a preto e branco é perfeita para realçar o tom de pesadelo que caracteriza a narrativa.
A cena do chuveiro estabeleceu-se como uma das melhores cenas da História do Cinema. Um raro exemplo de aprimorada execução e edição, que re-explorou a natureza do voyeurismo cinematográfico. Analisando-a frame a frame, verificamos como Hitchcock deixou muito à nossa imaginação. O ecrã é aspergido com o horror da cena e cabe-nos preencher os espaços em branco com a imaginação. Os violinos sibilam na magistral cena de Hitchcock, onde somos abandonados estremecendo e julgando ter presenciado um ser humano sendo brutalmente retalhado, quando os únicos cortes realmente experimentados ocorreram durante a edição.
Apesar da objecção da nossa memória, não visionamos a lâmina a trespassar a pele, não observamos feridas, nem sequer muito sangue. Somos traídos por inferência, pela demente fotografia de sangue a escorrer pelo ralo da banheira, numa experiência traumática que induz a nossa imaginação a conjurar imagens cujo ecrã não revela.

Apesar da sua sexualidade psicológica, “Psycho” não é sexualmente explícito. O filme alicia a audiência a espionar (tal como Hitchcock o faz declaradamente em “Rear Window”). O filme abre com um zoom direccionado a uma janela aberta, convidando o observador a espreitar e invadir o quarto onde Marion e o seu namorado têm um momento íntimo. Outras cenas que reforçam o voyeurismo sucedem quando Norman espia Marion num obsessivo close-up do seu olho e quando no final do homicídio no chuveiro o olho da vítima é focado. Na primeira situação a nossa posição é a de mirone, na segunda somos o assassino.
“Psycho” é uma exploração das regiões sombrias da mente humana, um estudo sobre a masculinidade e esquizofrenia, uma expedição às raízes do medo, um distorcido conto sobre homicídio, inveja, demência, que relega múltiplos filmes de terror actuais para a reputação de meros episódios da série de desenhos animados fofinhos “O Meu Pequeno Pónei”. Como filme de terror é um arrepiante ensaio sobre o horror e como filme em geral, é um brilhante ensaio sobre o estilo e atmosfera cinematográfica.
À medida que a lâmina da faca cintila na sua investida, tudo o que havia sido feito anteriormente está a ser golpeado e ceifado: as expectativas sobre heróis e vilões, o tempo de acção de um protagonista, os clichés banais de tudo o que era suposto ocorrer, a fantasia polida do bem triunfando sobre o mal. Obrigado Hitchcock!

16 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Simplesmente um CLÁSSICO! Não há palavras que o consigam descrever. É pena as suas sequelas e/ou remakes terem sido péssimos. Tenho-o em DVD em edição especial, e aconselho-o vivamente (até porque está a um bom preço). see ya!

10:20 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Grande clássico :D! Vou comprar a edição em DVD um dia destes.

10:27 da manhã  
Blogger Francisco Mendes said...

André Batista: Quiseram aproveitar-se da imagem de Anthony Perkins. Mas sempre o recordarei pela magnífica interpretação neste Clássico de Hitchcock. É imortal!
Também tenho o DVD. :D

s0lo: É uma excelente aquisição!

10:34 da manhã  
Blogger brain-mixer said...

bela análise! Mas confesso que da minha parte não consigo amar este filme... Não sei porquê mas passa-me ao lado, apesar de o considerar um clássico e um bom trabalho de Hitchcock. Mas dá para perceber que foi este filme que influenciou e criou as bases dos futuros thrillers. Por mim, considero os "Pássaros" o seu melhor filme, tem terror, bom suspense e grandes sequências bem trabalhadas.

Ah, sabias que foi psico que foi dos primeiros a meter o som do autoclismo? E que o sangue no chuveiro é afinal xarope de chocolate (mais escuro e intenso a preto e branco) ;)

6:25 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Sem dúvida nenhum um dos grandes clássicos do cinema! Incontornável, sufocante, intenso, mágico! Numa só palavra: Hitchcock!
É preciso dizer mais alguma coisa?
Belo post, excelente análise Francisco, parabéns! :)
Um abraço!

10:13 da tarde  
Blogger Coutinho77 said...

Excelente. O filme que inspirou um género. Um "must see" para todo o amante de cinema. As sequelas realmente são fracas, mas o psycho 2 talvez seja aquela em que ainda se sente uma certa claustrofobia visual.
Abraço!

4:04 da manhã  
Blogger Francisco Mendes said...

migueL: Belo ponto de vista migueL! Tenho de concordar contigo acerca da palavra Clássico.
Quanto a "Vertigo", adoro a panóplia e obsessão deliciosa de planos, bem como o twist maravilhoso, mas após "Psycho" o meu preferido é o incontornável "Rear Window". Sublime cinematografia voyeur. Imagem o visionamento desse filme numa sala de cinema... Se em casa ficamos com a sensação de nos encontrarmos naquele apartamento a observar a vizinhança, então numa sala de Cinema só faltaria ajudarmos Jefferies a movimentar-se na cadeira de rodas.

Grande Abraço!

11:04 da manhã  
Blogger Francisco Mendes said...

Edgar: Sabia... anteriormente a esse filme nunca havia sido mostrada uma sanita a descarregar.
E sabias que o nome do meio de Norman Bates é Francis... o santo padroeiro dos pássaros ("The Birds")? Aliás existem inúmeras referências a pássaros. :D

André Carita: Hitchcock é um colosso da Sétima Arte.
Abraço e obrigado!

Lost in Space: Também é o meu preferido, mas Hitchcock tem muitas obras a atingir a perfeição desta.

Coutinho: Nunca deveria ter sido alvo de qualquer sequela. É um marco!
Abraço!

11:17 da manhã  
Blogger Juom said...

Pessoalmente, acho que ainda considero o melhor do mestre, ele que tem tantas obras excelentes no currículo. Muito boa a tua análise, gostei bastante de ler :-)

12:40 da tarde  
Blogger Unknown said...

Esta é uma das mais horríveis lacunas na minha cinematografia experienciada...
A ver se é esta semana que saio em busca desse.

(adorei o teu texto Francisco! ;)

7:28 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Simplesmente o melhor suspense de todos os tempos!

11:49 da tarde  
Blogger ISABEL Mar said...

Excelente este post!

Um dos meus filmes favoritos é, no entanto, muito pouco comentado e raramente referido quando se fala da filmografia de Alfred Hitchcock. Refiro-me à "A casa Encantada" - Spellbound (1945), uma fantástica incursão pela interpretação dos sonhos de Freud, com cenários pintados por Salvador Dali.
Convido-o a deambular pelo meu blog
http://cinekultura.blogspot.com/

2:02 da manhã  
Blogger Francisco Mendes said...

Paulo: Obrigado!

rsd: Obrigado e vê lá se colmatas essa lacuna! ;)

marfil: Uma obra que nos deixa sem fôlego!

Isabel Martinho Reis: Conheço perfeitamente "Spellbound", que também é dos meus preferidos do mestre. Dali é o responsável pelas fabulosas sequências de sonho... são cenas impressionantes! Quanto aos elementos de Freud, estes encontram-se derramados um pouco por toda a imensa Obra de Hitchcock, inclusivé neste "Psycho".

8:04 da manhã  
Blogger Francisco Mendes said...

O remake era completamente desnecessário. E eu que sou admirador de Gus Van Sant!

1:11 da tarde  
Blogger Cataclismo Cerebral said...

Devo dizer que adoro esta Obra! Foi um filme pioneiro em termos de terror, seja no plano físico ou psicológico. O facto de a protagonista sair de cena muito cedo também foi muito arrojado para a época, já que o público viu-se de repente confrontado com a necessidade de se identificar com novas personagens. Depois, todos os pormenores, como por exemplo a roupa interior da Janet (antes do roubo é branca; depois, preta), a cena da banheira (de tão gráfica que foi, a censura teve de restringir as cenas de sangue), etc. Até em termos de promoção o filme foi um marco (a decisão de Hitchcock em apresentar no trailer a Vera Miles como protagonista e não Janet Leigh, por forma a "baralhar" os espectadores; o pedir que não se revelasse o segredo que surgia na fase final e o implorar para que não se chegasse atrasado ao início do filme,...). No entanto, tendo em conta todas estas preciosidades,tenho a dizer que o remake de 1998 me desiludiu bastante: o facto de trair a sexualidade psicológica presente no original fez com que o detestasse. A cena da masturbação está fora de contexto, porque creio que a mente retorcida do Norman (e, por acréscimo, a sua sexualidade) não se manifestaria dessa forma. Depois, o infame diálogo do Walkman, essa tentativa falhada de modernizar (?) o filme. Por fim, Vince Vaughn! Não tenho nada contra este actor, mas aqui está completamente errado em termos representativos e, acima de tudo, em termos físicos: Vince é imponente, algo musculado; Perkins era frágil, até doentio na sua débil aparência (o que gerava nos espectadores um sentimento de empatia automática).


Abraço

7:56 da tarde  
Blogger Francisco Mendes said...

Excelente comentário. Absolutamente de acordo!

Abraço!

9:29 da manhã  

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